Na
filosofia das ideias puras, que não considera o indivíduo real, a
passagem é de absoluta necessidade (como aliás no hegelianismo, no qual
tudo se realiza com necessidade), a passagem de compreender a agir não
tropeça em nenhum embaraço. (...) é igualmente esse, no fundo, todo o
segredo da filosofia moderna, toda ela contida no cogito ergo sum,
na identidade do pensamento e do ser; (ao passo que o cristão, esse
pensa: " Que vos seja dado segundo a vossa fé." ou "tal fé tal homem,
ou: crer é ser." A filosofia moderna não é, como se vê, senão paganismo.
(...) no mundo real em que se trata do indivíduo existente, não se
evita essa minúscula passagem do compreender ao agir (...) A vida do
espírito não tem paragens (nem tão pouco, afinal, estado: tudo é
actual); portanto, se um homem, no próprio segundo em que reconheça o
justo não o pratica, eis o que se produz: em primeiro lugar o
conhecimento estanca. (...) A vontade é um agente dialéctico, que por
sua vez determina toda a natureza interior do homem. Se ela não aceita o
produto do conhecimento, nem por isso se põe a fazer o contrário
daquilo que o conhecimento apreendeu, tais conflitos são raros; mas
deixa passar algum tempo, abre-se um ínterim, e ela diz: ver-se-á até
amanhã. Entretanto o conhecimento obscurece-se cada vez mais, as partes
inferiores da nossa natureza tomam uma supremacia cada vez maior; ai de
nós! porque é preciso fazer o bem imediatamente mal se reconheça (é é
por isso que na especulação pura é tão fácil a passagem do pensamento ao
ser, porque aí tudo é dado antecipadamente), ao passo que para os
nossos instintos inferiores a tendência é para demorar, demoras que a
vontade nem por isso detesta e ante as quais semicerra os ollhos. E,
quando se obscurece suficientemente, o conhecimento põe-se no mais
completo acordo com a vontade; por fim é o acordo perfeito, porque
aquele passou para o campo contrário e ratifica tudo o que esta (a
vontade) arranja. Assim vivem talvez multidões de pessoas; trabalhando,
como que insensivelmente, para obscurecer o seu juízo ético e
ético-religioso, (...) desenvolvem em si um conhecimento estético e
metafísico, o qual, para a Ética, não é senão divertimento.
Mas
ultrapassamos até aqui o socratismo? Não, porque Sócrates diria que,
tudo se passa assim, é a prova de que afinal o homem não compreendeu o
justo. Por outras palavras, para enunciar que alguém, sabendo-o, pratica
o injusto, o helenismo carece de coragem e defende-se dizendo: quando
alguém pratica o injusto, ignora o justo.
Sobre
isso não existe dúvida; e acrescentarei não ser possível a um homem
passar adiante, sozinho e por si próprio dizer o que é o pecado, visto
que vive nele; todos os seus discursos sobre o pecado não são, no fundo,
senão a sua desculpa, uma atenuação pecadora. É por isso que o
Cristianismo começa de outro modo, pondo a necessidade de uma revelação
de Deus, que instrua o homem sobre o pecado, mostrando-lhe que ele não
está em não compreender o justo, mas em não querer compreender, em não
querer o justo.
Sören Kierkegaard. O desespero humano, pag. 160, 161, Livraria Tavares Martins, Porto1979
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