domingo, 22 de novembro de 2015

sábado, 21 de novembro de 2015

Breve História da Retórica.

Retórica e democracia

Não pode haver uma definição de retórica sem a referir à cultura grega, não só porque retórica é etimologicamente um termo grego, mas sobretudo porque a retórica constitui um dos traços fundamentais e distintivos do génio grego. O termo grego retoriké é afim aos termos retor (orador) e retoreia (discurso público, eloquência) e significa tanto a arte oratória como a disciplina que versa essa arte. Contudo, o sentido genuíno do termo ``retórica'' só se alcança quando se percebe como a civilização grega se distinguiu de todas as outras por assentar na palavra pública. Os gregos tinham consciência desse traço distintivo e enalteciam-no. Isócrates elogia Atenas por ser a cidade que descobriu a civilização assente nas palavras, e de saber retirar da capacidade da linguagem as consequências decorrentes dessa superioridade humana sobre todos os animais:
Foi a nossa cidade que revelou a cultura, que descobriu e organizou todas estas vantagens, que nos ensinou a agir e dulcificou as nossas relações, e que distinguiu entre as desgraças provocadas pela ignorância e pela necessidade, e ensinou a precavermo-nos contra aquelas e a suportar estas corajosamente. Foi ela que honrou a eloquência, que todos desejam, e cujos possuidores são invejados. Ela tem consciência de que somos, de todos os animais, os únicos que a natureza dotou deste privilégio e que, por termos esta superioridade, diferimos em tudo o mais; via que nas demais actividades a sorte é tão atrabiliária que é frequente que os inteligentes sejam mal sucedidos e os tolos prosperem, mas que os discursos belos e artísticos não são apanágio das pessoas inferiores, mas obra de uma alma que pensa bem; que os sábios e os que parecem ignorantes diferem uns dos outros sobretudo nisto, e ainda que os que foram criados desde início como homens livres não se conhecem pela coragem, riqueza ou qualidades dessa espécie, mas se distinguem sobretudo pela maneira de falar, e é este o sinal mais seguro da educação de cada um de nós, e aqueles que sabem usar bem da palavra, não só são poderosos no seu país, como honrados nos outros. (Panegírico, 47-49)2
Da faculdade específica do homem de falar e de, desse modo, tratar dos assuntos da cidade e dirimir os conflitos, extraíram os gregos a democracia, o regime político da maioria. O tirano ou os oligarcas mandavam pela força, na democracia o poder obtinha-se pela palavra convincente nas assembleias. Nada mais contrário ao espírito grego do que impor pela força o que deveria ser objecto de uma decisão maioritária, discutida previamente.3 O elogio que Péricles faz da constituição ateniense no discurso fúnebre aquando do enterro dos primeiros mortos na Guerra do Peloponeso, é ele mesmo uma lídima peça retórica sobre a organização política democrática, em que a direcção do Estado não se limita a poucos, mas se estende à maioria, onde há igualdade perante a lei, em que a diferença social, riqueza ou pobreza, não dá preferência nas honras públicas, sendo o único critério o mérito de cada um. Na cidade de homens livres as palavras são uma condição da actuação política. Veja-se este excerto do discurso de Péricles, onde marca a diferença de Atenas face a outras cidades gregas, nomeadamente Esparta:
Os mesmos indivíduos cuidam das questões familiares e das políticas, e a outros, aos que se dedicam aos seus ofícios, não falta um conhecimento suficiente dos assuntos públicos. Somos os únicos que entendemos que quem não compartilha destas preocupações não é indiferente, mas sim inútil, e por nós julgamos as questões públicas, ou pelo menos, estudamo-las convenientemente, não por pensarmos que as palavras prejudicam a acção, mas sim que é mais nocivo não ensinar primeiro pela discussão, antes de chegar o tempo de actuar. Diferentemente dos outros, temos ainda a norma de ousar o máximo mas reflectir profundamente sobre a empresa a que nos votamos. Enquanto que aos outros a ignorância traz a coragem, e o cálculo acarreta a hesitação.4
A ideia aqui exposta de que a retórica é traço do espírito democrático grego não contende, nem muito menos é posta em causa, como demonstrarei, com a lenda que remonta o início da retórica às disputas legais pela pertença de terras na Sicília nos primórdios do Século V antes de Cristo. Roland Barthes, por exemplo, descreve deste modo o surgimento da retórica:
A Retórica nasceu de processos de propriedade. Cerca de 485 a.C., dois tiranos sicilianos, Gelão e Hierão, efectuaram deportações, transferências de população e expropriações, para povoar Siracusa e lotear os mercenários; quando foram depostos por uma sublevação democrática e se quis voltar à ante qua, houve processos inumeráveis, pois os direitos de propriedade eram pouco claros. Estes processos eram de um novo tipo: mobilizavam grandes júris populares, diante dos quais, para os convencer, era necessário ``ser eloquente''. Esta eloquência, ao participar simultaneamente da democracia e da demagogia, do judicial e do político constituiu-se rapidamente em objecto de ensino. Os primeiros professores desta nova disciplina foram Empédocles de Agrigento, Corax, seu aluno de Siracusa (o primeiro que cobrava pelas suas lições), e Tísias.5
O próprio Barthes interpreta esta origem, a arte da palavra ligada a uma reivindicação de propriedade, vendo na retórica um cru instrumento de poder:
como se a linguagem, na sua qualidade de objecto de uma transformação e condição de uma prática, se tivesse determinado, não a partir de uma subtil mediação ideológica, mas a partir da socialidade mais nua, afirmada na sua brutalidade fundamental, a da possessão de terras: começámos a reflectir sobre a linguagem para defendermos os nossos bens.6
Olhando, sobretudo a partir da crítica de Platão à retórica, para esta leitura que Barthes faz da sua origem, poder-se-ia pensar que a retórica não passaria de uma técnica de domínio pela linguagem, extensível a qualquer actividade humana. Que essa foi, aliás, a compreensão e a aplicação que os sofistas fizeram da retórica, parece ainda mais reforçar a percepção da retórica como arte demagógica, aplicável tanto na democracia, como na tirania, ou em qualquer outro regime político. A retórica seria apenas um instrumento de persuasão dos outros, fosse para que fim fosse, de persuadir pela palavra os juízes no Tribunal, os senadores no Conselho, o povo na Assembleia, enfim os participantes de qualquer espécie de reunião política e, assim, com esse poder fazer seus escravos o médico e o professor de ginástica, e até o grande financeiro7
Mas a eventual origem forense da retórica não invalida de modo algum a concepção da retórica como expressão de uma mentalidade argumentativa e livre. O carácter agónico que existe entre as partes num tribunal distingue-se justamente por a decisão não decorrer da força bruta ou da violência de uma das partes, mas do poder dos argumentos aduzidos. Se algo diferencia a aplicação da justiça numa sociedade livre ou numa sociedade totalitária é justamente a possibilidade de qualquer das partes poder apresentar os seus argumentos e com eles influenciar a decisão do juiz, seja este um indivíduo ou um júri. Quem confia no uso da palavra para reclamar justiça não precisa de lançar mão de meios violentos.
O uso demagógico ou sofista da retórica não nega o carácter retórico da democracia e a íntima conexão entre liberdade política e discurso persuasivo. A má utilização que se pode fazer da retórica não significa de modo algum a negação da relação essencial entre retórica e democracia. E a razão fundamental desta relação é a liberdade do indivíduo suposta numa e noutra. Só tem sentido falar de retórica numa sociedade de homens livres e a democracia é o regime político por excelência dessa sociedade.
Num capítulo dedicado ao esplendor e miséria da retórica, Tzvetan Todorov, fixa muito bem a indissociabilidade entre democracia e retórica ao analisar a obra De Oratore de Cícero. 8
A democracia é a condição indispensável ao desenvolvimento da eloquência; reciprocamente, a eloquência é a qualidade superior do indivíduo que pertence a uma democracia: nenhum dos dois pode passar sem o outro. A eloquência é ``necessária'': eis o seu traço dominante, e, ao mesmo tempo, a explicação do seu sucesso.9
A crise da retórica surge quando se instala um poder forte, de direcção autoritária. Quando se instala o poder de um, monarca ou tirano, desaparece a eloquência. Todorov cita a seguinte passagem de Tácito:
Por que motivo se há-de defender uma opinião no Senado, se sabemos que a elite dos cidadãos concorda imediatamente com ela? Para quê reproduzir discursos diante do povo, se os interesses públicos não são deliberados por incompetentes, nem pela multidão, mas unicamente pelo mais sábio dos homens? ( Diálogo dos Oradores, XLI).10
É mediante a análise desta obra de Tácito, aliás, que Todorov traça a crise da retórica. O historiador romano criticava a eloquência, justamente por a associar a um regime democrático, de liberdade de discussão e de decisão. Considerava que um regime político que assentava na força da persuasão tinha um preço demasiado alto, a insegurança de cada cidadão. Tácito defendia um regime musculado, autoritário, onde a vida política não dependesse das capacidades persuasivas, mas sim da clarividência e da autoridade do poder instituído. A democracia, necessariamente fundada na eloquência, representava um risco para a sociedade.
Essa grande e gloriosa eloquência de outrora é filha do desregramento a que os tolos chamam liberdade (...); desconhecendo a obediência e a seriedade, obstinada, temerária e arrogante, ela não floresce nos Estados dotados de uma consituição. (...) Para a República, a eloquência dos Gracos não valia tanto como o peso das leis que faziam suportar, e a fama oratória de Cícero teve um preço demasiado alto para os fins conseguidos. ( Diálogo dos Oradores, XL) 11
Quão longe se encontra este entendimento de Tácito (55-120 p.C.), um historiador da época dos Césares, do entendimento de Isócrates (Séc. V-IV a.C.) sobre o que é uma constituição! Veja-se o que este retórico grego escreve sobre a antiga constituição de Atenas:
Os que naquele tempo administravam a cidade estabeleceram uma constituição que não era designada pelo nome mais comum e mais brando, mas que não se mostrava tal, pelos seus actos, àqueles que deparavam com ela, e que não educou os cidadãos de tal maneira que julgassem que era democracia a indisciplina, a liberdade o desprezo das leis, ou igualdade a licença de dizer tudo, ou bem-estar a permissão de proceder assim, mas essa constituição desprezava e castigava tais indivíduos, tornando todos os cidadãos melhores e mais sensatos. (Areopagítico, 20) 12
O espírito cesarista que enforma a crítica do romano Tácito à eloquência é o oposto do espírito democrático que anima o elogio do grego Péricles à constituição ateniense. Para o espírito prático de um romano, de privilegiar a acção em detrimento da palavra, o tempo consumido nas assembleias do povo no governo de Atenas não poderia deixar de ser visto como um desperdício de energias.

A retórica como discurso público

Retórica não pode ser confundida com outras formas de linguagem, nomeadamente a conversa. O que caracteriza a retórica nos gregos é ela pertencer à esfera política da vida de um cidadão, e não à sua vida privada. A distinção entre o político ou público e o privado é assim imprescindível para uma compreensão cabal da especificidade da retórica.
A vida política é a vida livre que o cidadão desenvolve enquanto membro participante e activo na condução dos negócios da polis. Distinta é a vida privada, a vida da família, dos escravos e dos animais domésticos, onde são satisfeitas as necessidades básicas como a alimentação e a reprodução, necessidades que não são distintas das dos animais. A organização familiar era uma imposição da natureza, tal como a organização em grupo de outras espécies de animais. Na esfera privada não há espaço para a liberdade, aí o chefe exerce um poder absoluto sobre mulheres e escravos. A polis demarcava-se do carácter familiar justamente por ser uma organização de iguais, onde não havia nem servos nem senhores.
Não é o viver em grupo, ou em sociedade, que caracteriza o homem dos outros animais. Hannah Arendt chama a atenção para a correcta tradução de zôon politikon não como animal social, mas como animal político. A sociabilidade é até um ponto em comum dos homens com os animais. O traço verdadeiramente distintivo é a natureza política do homem. A polis é como uma segunda vida, bios politikos, que só se realiza uma vez resolvidas as necessidades próprias da condição animal. Na vida privada o homem enfrenta as necessidades, na vida política ou pública o homem exerce a sua liberdade. Portanto, cada cidadão faz parte de dois tipos de vida, a que lhe é própria ( idion), e a que lhe é comum ( koinon). Tem a vida privada, a natural ou familiar, e a pública, a livre ou política. O ponto de união entre estas duas vidas é que a família satisfazia as condições de subsistência necessárias à vida de liberdade da polis13
A vida pública ou política era de certo modo um luxo que estava, portanto, reservado aos que podiam gozar de uma subsistência garantida. Mulheres, metecos e escravos não tinham uma vida política. E aqui coloca-se a questão sobre a abrangência da democracia ateniense. Com efeito, a partir dos números prováveis da população de Atenas em 430 a.C., 30.000 cidadãos, 120.000 familiares, 50.000 metecos e 100.000 escravos, verificamos que apenas 10% da população eram politai, cidadãos.14 A democracia ateniense era de algum modo uma aristocracia alargada.
Fustel de Coulanges dá-nos um retrato muito pormenorizado do dia a dia de um cidadão ateniense no gozo e cumprimento dos seus direitos e deveres políticos e vemos que é uma vida muito trabalhosa.
Espanta verificar todo o trabalho que esta democracia exigia dos homens. Era governo muito trabalhoso. Vejamos em que se passa a vida de qualquer ateniense. Determinado dia, o ateniense é chamado à assembleia do seu demo e tem de deliberar sobre os interesses religiosos ou financeiros dessa pequena associação. Um outro dia, este mesmo ateniense está convocado para a assembleia da sua tribo; trata-se de regular uma festa religiosa, ou de examinar as despesas, ou de fazer decretos, ou ainda de nomear chefes e juízes. Exactamente três vezes por mês torna-se preciso que assista à assembleia geral do povo, e não tem o direito de faltar. Mas a sessão é longa, porque o ateniense não vai à assembleia somente para votar. Chegado pela manhã, exige-se que o ateniense ali permaneça até hora avançada do dia a ouvir os oradores. Não pode votar senão tendo estado presente desde a abertura da assembleia, e tendo ouvido todos os discursos. (...) O dever do cidadão não se limitava a votar. Quando chegava a sua vez, também devia ser magistrado no seu demo ou na sua tribo. Em média, ano sim, ano não, era heliasta, isto é, juiz, passava todo esse ano nos tribunais, ocupado a ouvir os litigantes e a aplicar as leis. Quase não havia em Atenas cidadão que não fosse chamado duas vezes na sua vida a fazer parte do senado dos Quinhentos; então, durante um ano, todos os dias se sentava desde manha até à noite, recebendo os depoimentos dos magistrados, fazendo-os prestar as suas contas, respondendo aos embaixadores estrangeiros, redigindo as instruções dos embaixadores atenienses, examinando todos Os negócios que deviam ser submetidos ao povo, e preparando todos os decretos. Enfim, o ateniense podia ser magistrado da cidade, arconte, estratego, astínomo, quando a sorte ou o sufrágio o indicava. Vê-se quão pesado encargo era o de ser cidadão de qualquer Estado democrático, porque correspondia a ocupar em serviço da cidade quase toda a sua existência, pouco tempo lhe restando para os trabalhos pessoais e para a sua vida doméstica. Por isso, muito justamente, dizia Aristóteles não poder ser cidadão aquele homem que necessitasse de trabalhar para viver. Tantas eram as exigências da democracia. O cidadão, como o funcionário público de nossos dias, devia pertencer inteiramente ao Estado. Na guerra, dava-lhe o seu sangue; durante a paz, o sen tempo. Não era livre para descurar dos negócios públicos por se ocupar com mais cuidado dos seus próprios. Pelo contrário, devia descurar dos seus, para trabalhar em proveito da cidade. Os homens passavam a sua vida uns a governarem aos outros. A democracia não podia existir senão sob a condição de trabalho incessante para todos os seus cidadãos. Por pouco que afrouxasse, ela acabaria pouco a pouco por perecer ou por se corromper. 15
É neste dia a dia da vida política que o cidadão vive num mundo marcado pela eloquência ( léxis). As assembleias são palco de intensos debates. Todo o homem podia falar sem distinção de fortuna, nem de profissão, mas precisava de provar estar no gozo dos seus direitos políticos, não ser devedor ao Estado, ser de costumes puros, estar legitimamente casado, possuir bens de raiz na Ática, haver cumprido todos Os seus deveres para com seus pais, ter feito todas as expedições militares para as quais fora escolhido, e provar não ter deixado no campo, em nenhum combate, o seu escudo. 16
Uma vez tomadas estas precauções contra a eloquência, o povo abandonava-se-lhe em seguida inteiramente. Os atenienses como nos diz Tucídides, não acreditavam em que e palavra prejudicasse a acção. Sentiam, pelo contrário, a necessidade de se esclarecerem. A política já não era, como no regime precedente, negócio de tradição e de fé. Era preciso reflectir e ponderar sobre as razões. A discussão era indispensável, porque sendo toda a questão mais ou menos obscura, só a palavra podia iluminar a verdade, e povo ateniense queria que cada negócio lhe fosse apresentado sob todos os seus diferentes aspectos e lhe mostrassem claramente os prós e os contras. Considerava bastante os seus oradores; diz-se ter o costume de os recompensar em dinheiro por cada discurso pronunciado na tribuna. O povo fazia mais ainda: escutava-os; não podermos portanto apresentar este povo como multidão turbulenta ou barulhenta. Pelo contrário, a sua atitude era correctíssima; o poeta cómico apresenta-o escutando boquiaberto, imóvel nos seus bancos de pedra. Os historiadores e oradores descrevem-nos muito frequentemente estas reuniões populares; quase nunca os vemos a interromperem os oradores; quer esse orador seja Péricles, ou Cléon, Ésquino ou Dernóstenes, o povo continua atento; e, quer o lisonjeiem quer o repreendam, escuta. Deixa exprimir as mais opostas opiniões, com louvável paciência. Algumas vezes murmúrios, mas nunca gritos nem assuadas. O orador, diga o que disser, pode sempre chegar ao fim do seu discurso.17
Como se vê, retórica e democracia implicavam-se mutuamente e constituíam a esfera pública de Atenas.

António Fidalgo