terça-feira, 25 de outubro de 2022

Texto para resumo Bianca 11E

 


“Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei; pois são tão metafísicas e tão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que se possa julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de Geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava. Depois, examinado com atenção o que eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se mui evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de crer que eu tivesse existido; compreendi por aí que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.”

Descartes, Discurso do Método, IV Parte

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Texto para resumo Leonor Freitas 11E

 


Os argumentos dos céticos

"O ceticismo, na sua versão mais extrema, é a ideia de que o conhecimento não é possível. Os céticos podem apresentar o seguinte argumento a favor da sua posição:

Se S sabe que P, então não é possível que S esteja enganado acerca de P.
É possível que S esteja enganado acerca de P.
Portanto, S não sabe que P.

Este argumento é um modus tollens e tem, por isso, forma válida. Se as premissas forem verdadeiras, o argumento é sólido e a conclusão verdadeira. A primeira premissa é meramente a expressão da condição que uma proposição tem de estar justificada de modo a garantir a sua verdade para que possa ser conhecimento. Admitamos, por isso, que é verdadeira. E a segunda? Como prova o cético esta premissa? É possível defendê-la apelando, por exemplo, aos erros e ilusões dos sentidos ou às limitações da memória e da razão. Mas também é possível defendê-la com um argumento mais geral que vise mostrar que nunca podemos justificar as nossas crenças e, portanto, que é sempre possível que estejamos enganados acerca delas.

Para vermos como, pensemos numa qualquer afirmação de cuja verdade julguemos estar absolutamente certos, como, por exemplo, que “A Lua é o único satélite natural da Terra”, ou que “Portugal situa-se na Europa”. A questão crucial é esta: que justificação temos para estarmos certos da sua verdade? Temos de ter uma justificação, claro. Caso contrário essas crenças não constituem conhecimento. Podemos justificar as nossas crenças dizendo, por exemplo, que as aprendemos na escola com os nossos professores de Geografia ou de Ciências da Natureza, que, dada a sua formação, são especialistas no assunto. O que fizemos, deste modo, foi justificar uma crença com outra crença. Mas isto, como é óbvio, levanta uma outra questão: que justificação temos para esta nova crença? Esta crença está, afinal de contas, numa posição similar à primeira. Se essa precisa de uma justificação, porque sem ela não constitui conhecimento, o mesmo se passa com esta. E, evidentemente, se esta não constitui conhecimento, também não pode justificar a primeira. Uma forma de justificar esta segunda crença é, claro, recorrer a uma outra da qual ela possa derivar. É fácil ver, no entanto, que o mesmo problema se colocará em relação a essa nova crença. Também ela precisará de uma justificação. Cada afirmação precisa de uma justificação e a justificação de uma nova justificação, numa regressão sem fim. Desse modo, parece, nem a primeira nem qualquer das outras crenças está justificada.

Há alguma forma de evitar esta consequência? Uma possibilidade é parar numa dada crença e não recuar mais na cadeia das justificações, deixando essa crença sem qualquer justificação. A outra é recuar nas nossas justificações até, eventualmente, voltarmos a uma crença que já usámos como justificação, raciocinando em círculo. Por que razão devemos acreditar no professor de Geografia ou de Ciências da Natureza? Porque o que ele diz está de acordo com o manual da disciplina. E por que devemos acreditar nesse manual? Porque foi escrito por especialistas. E como sabemos que são especialistas? Porque se não o fossem, não escreveriam manuais.

Estas três possibilidades em conjunto constituem o chamado trilema de Agripa, do nome do cético grego do século I a quem a tradição atribui a sua formulação. De acordo com este trilema, quando pretendemos justificar uma crença por intermédio de outras crenças estão disponíveis apenas três alternativas:

  1. Remontar infinitamente na cadeia de justificações;
  2. Raciocinar em círculo;
  3. Parar numa crença não suportada.

Nenhuma destas três possibilidades, afirmam os céticos, é melhor que a outra. Parar arbitrariamente na cadeia de justificações e raciocinar em círculo não é uma forma mais apropriada de justificar as nossas crenças do que regredir ao infinito. E como não existe outra alternativa, eles concluem que não é possível justificar nenhuma das nossas crenças e que, portanto, o conhecimento não existe."

Álvaro Nunes, texto retirado de https://criticanarede.com/anunesoproblemadoceticismo.html 

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Texto para resumo Pedro Claudino 11E

 

Foi uma estranha coincidência. Num dia da semana passada, quando a Noémia estava a pagar o café que bebera, o homem que estava atrás dela, vasculhando os bolsos, deixou cair o seu porta-chaves. A Noémia apanhou-o e não pôde deixar de reparar no coelhinho pendurado no porta-chaves. Ao receber o porta-chaves, o homem, cuja face era bastante peculiar, angulosa e pálida, mostrou-se um pouco embaraçado, dizendo “Trago-o sempre comigo, por razões sentimentais.” Corou e nada mais disse.

Logo no dia seguinte a Noémia estava para atravessar a rua quando ouviu um chiar de travões e uma pancada surda. Quase sem pensar deixou-se arrastar com outras pessoas que, como limalhas de ferro convergindo para um magnete, se precipitavam para o local do acidente. A Noémia tentou perceber quem era a vítima e viu a mesma face branca e irregular. Um médico estava já a examinar o homem. “Está morto.”

Ela teve de reportar à polícia. ‘Tudo o que sei é que ele bebeu um café ontem na pastelaria e que ele trazia sempre consigo um porta-chaves com um coelho branco.’ A polícia pôde confirmar a verdade de ambos os factos.

Cinco dias depois, a Noémia quase que se pôs aos gritos na pastelaria. Estando outra vez na bicha para pagar o café, deparou com uma pessoa em tudo semelhante ao mesmo homem que cinco dias antes estivera atrás de si. Ele percebeu o espanto dela sem se mostrar surpreendido. ‘Pensou que eu era o meu irmão gémeo, não foi?’, perguntou. A Noémia acenou com a cabeça. ‘Não é a primeira pessoa a reagir assim desde o acidente. Até porque frequentávamos a mesma pastelaria, embora habitualmente a horas diferentes.’

Enquanto o homem falava, a Noémia não pôde deixar de reparar no que o homem tinha nas mãos: um porta-chaves com um coelho branco. O homem também não se deixou impressionar com isso. ‘Sabe como são as mães; gostam de tratar os filhos de igual modo.’
A Noémia achou tudo isto desconcertante. Quando finalmente se acalmou, ficou preocupada com o seguinte: terei dito a verdade à polícia?

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O que a Noémia disse à polícia foi ‘Tudo o que sei é que ele pagou um café ontem na pastelaria e que trazia sempre consigo um porta-chaves com um coelho branco.’ Ambos os factos se confirmaram verdadeiros. Mas estava ela certa, ao dizer que sabia que eles eram verdadeiros?
Muitos filósofos argumentaram que o conhecimento implica três condições. Para conhecer algo é preciso, primeiro, acreditar que esse algo é verdadeiro. Não se pode saber que Roma é a capital de Itália se estamos convencidos de que a capital é Milão. Em segundo lugar, aquilo em que acreditamos tem de ser verdadeiro. Não se pode saber que Milão é a capital de Itália, sendo que a capital é Roma. Em terceiro lugar, a nossa crença verdadeira tem de ser de alguma maneira justificada. Se nos acontece ficarmos convencidos sem boas razões de que Roma é a capital de Itália e isso se revela certo, não devemos dizer que possuíamos conhecimento. Tratou-se apenas de um palpite afortunado.

A Noémia possuía duas crenças verdadeiras sobre o morto. Também parecia que tinha justificação para as ter. Porém, parece que não sabia realmente que eram verdadeiras. Não sabia que o homem tinha um irmão gémeo que trazia consigo um porta-chaves idêntico ao do morto. Portanto, se o homem que morreu tivesse sido o irmão gémeo do homem que ela viu na pastelaria e se este último não tivesse estado na pastelaria no dia anterior, nem trouxesse consigo aquele porta-chaves, ela teria afirmado saber as mesmas duas coisas acerca dele, só que desta vez estaria enganada.

Para se ter verdadeiramente ideia de quão pouco ela sabia, note-se que ainda agora a Noémia não sabe se o homem que ela viu na pastelaria no dia antes do acidente era o gémeo que morreu no acidente ou o outro que ela viu na pastelaria uns dias depois. Ela não tem ideia de qual é qual.

A solução óbvia para este problema parece ser que é preciso precisar melhor a ideia de justificação. A Noémia não sabia, porque a sua justificação para dizer que sabia os dois factos sobre o morto não era suficientemente forte. Contudo, se assim é, então é preciso exigir que o conhecimento pressuponha condições de justificação de uma crença muito apertadas, seja ela qual for. E isso significa que quase tudo o que julgamos saber não se encontra suficientemente justificado para poder contar como conhecimento. Se a Noémia não sabe na verdade o que pensava saber sobre o homem que morreu, quer dizer que também nós não sabemos muito do que pensamos saber.

Julian Baggini, The Pig That Wants To Be Eaten and 99 other thought experiments (London, 2005, págs. 187-189). Trad. de Carlos Marques.