quarta-feira, 29 de novembro de 2023

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Texto para resumo Matilde Ferreira 11A e Maria Simões 11I


Quando por conseguinte temos alguma suspeita de que um termo filosófico é empregue sem nenhum significado ou ideia (como é muito frequente), basta-nos perguntar sobre a impressão de que a ideia supostamente deriva. E se for impossível encontrar alguma, isto servirá para confirmar a nossa suspeita. Ao clarificar assim as ideias, podemos razoavelmente esperar que possam ser removidos todos os conflitos que possam surgir sobre a sua natureza e realidade.
As consequências destas linhas são estonteantes.
Consideremos a ideia de um eu durável, algo de substancial que persiste por detrás das muitas mudanças que experimentamos ao vivermos a vida. Suponho, por exemplo, que esta manhã sou essencialmente o mesmo eu que era quando me fui deitar a noite passada. Não só isso, acho também que sou o mesmo eu que era na juventude que desaproveitei. Acho que serei o mesmo eu enquanto viver. Sem dúvida, algumas coisas mudaram: cresci, ganhei algumas cicatrizes, o meu cabelo está a tornar-se um pouco grisalho. Contudo, parece haver algo de essencial, o meu verdadeiro eu, que persiste em todas estas alterações acidentais.
Se concordarmos com o princípio de Hume sobre a relação entre ideias e impressões, e se estivermos convencidos de que o seu método de remover ideias fictícias é o caminho certo, temos apenas que perguntar: «De que impressão é a minha ideia derivada?» Ao olhar para dentro de mim, afirma Hume, não encontro nada, excepto uma série de impressões fugazes – ódio, amor, calor, dor, imagens, sons, cheiros e coisas do género –, mas nada permanente, nada que persista em todas as alterações. Em suma, nenhuma impressão corresponde à nossa ideia de eu. A ideia presente na palavra «eu» pode juntar-se a «unicórnio»: «eu» é uma palavra que expressa uma ideia ilusória, uma ficção da imaginação.
Mas as coisas tornam-se muito piores. A abordagem que Hume faz da natureza do entendimento humano começa com uma distinção entre dois tipos de «objectos da razão humana»: relações de ideias e matérias de facto. As relações de ideias podem ser descobertas apenas pela razão. Podemos saber que os solteiros são homens não casados ou que duas vezes cinco é metade de vinte pensando apenas sobre as relações entre as ideias em causa. As matérias de facto, porém, podem apenas ser descobertas pela experiência. Podemos meditar o tempo que quisermos sobre a proposição de que o sol está a brilhar, mas só saberemos se ela é verdadeira olhando pela janela. Há outra diferença entre estes dois tipos de proposição. O contrário de uma matéria de facto é possível, mas se negarmos uma relação entre ideias verdadeira, incorremos numa contradição. O sol pode não ser brilhante, mas não se pode estar mais longe da verdade do que quando alegamos que os solteiros são casados.


James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy Books (London, 2006, págs. 66-68). Trad. Maria Miguel Pires (rev. científica Logosferas).

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Texto para resumo e análise: Matilde Carvalho e Maria Palma 11I

 


DAVID HUME: unicórnios, eus e homens não casados

Hume começa, tal como Locke, por considerar os conteúdos da mente, os objetos do entendimento humano ou – nas suas palavras – as perceções da mente ou materiais do pensamento. Hume divide estes conteúdos em impressões e ideias. Há uma clara distinção, já notada por Locke, entre sentir realmente dor, calor, raiva, ver uma paisagem, ouvir uma sirene ou desejar uma bebida fresca e recordar mais tarde ou imaginar estas experiências. Hume usa o termo «impressões» para indicar «as nossas perceções mais vívidas, quando ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos». As ideias têm menos força, são cópias fracas das impressões, trazidas à mente pela memória ou pela imaginação.


Qual, para Hume, é a relação entre ideias e impressões? Hume afirma que «todas as nossas ideias ou perceções mais débeis são cópias das nossas impressões ou perceções mais “vividas”». Por outras palavras, as ideias derivam apenas da experiência. É claro que Hume sabe que algumas ideias – por exemplo, a minha ideia de unicórnio – não correspondem exatamente a uma impressão particular. Mas as partes que compõem a minha ideia de um unicórnio – ideias de cavalos e de chifres – são cópias de coisas que já vi no mundo. Limitei-me a combinar ideias derivadas da experiência de uma maneira nova. A ideia de Hume é que apesar de a mente parecer porventura quase ilimitada na sua capacidade de imaginar e pensar abstratamente, a matéria bruta sobre a qual ela opera é sempre extraída de impressões.


É este o cerne do empirismo, e Hume oferece alguns argumentos em sua defesa. Sugere que pensemos nas nossas próprias ideias e que tentemos apontar uma que não dependa de uma impressão original. Ataca também diretamente a ideia favorita dos racionalistas – a ideia de Deus –, e mostra que podemos adquiri-la pensando nas qualidades das nossas mentes exagerando depois tanto quanto quisermos o que há nelas de bom e de sábio. Finalmente, considera os indivíduos que têm falta de uma aptidão sensorial – os cegos, por exemplo – e nota que estes não têm nenhuma ideia de cor. A explicação, argumenta, é que as ideias são cópias das impressões, e que quem nunca teve impressões relevantes não pode ter as ideias correspondentes.


Há certos factos sobre impressões e ideias que nas mãos de Hume têm consequências filosóficas de longo alcance. Comparadas com as impressões, as ideias são naturalmente fracas e obscuras e é fácil cometer dois tipos de erros quando pensamos sobre elas. Em primeiro lugar, podemos confundir uma ideia com outra, podemos pensar que se justifica tirar uma certa conclusão acerca de uma ideia quando o que realmente acontece é que estamos a pensar numa ideia semelhante, mas diferente. Em segundo lugar, e pior, usamos palavras para representar ideias, e o nosso discurso pode desenrolar-se alegremente mesmo que as partes relevantes da nossa linguagem não tenham correspondência com alguma ideia fixa ou determinada. Numa disputa filosófica, quando não estamos a falar em cavalos e de chifres, mas em ideias muito complexas e abstratas, é fácil termos uma conversa em que são usadas as mesmas palavras para mencionar coisas diferentes. Podemos até discutir sobre nada. A nossa disputa poderá ser sobre ideias ilusórias, meros fantasmas sem base na experiência – o equivalente filosófico dos unicórnios. 


James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy Books (London, 2006, págs. 66-68). Trad. Maria Miguel Pires (rev. científica Logosferas).

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Texto para resumo Maria Marques 11A e Letícia Assunção 11I



Revejam as regras dos resumos de texto
O projeto de Hume
O impacto das ideias de Descartes e daqueles que com ele fizeram a revolução científica do século XVII — Galileu, Kepler, Boyle, e, sobretudo, Newton — foi tão profundo, que no começo do século XVIII a visão escolástica do mundo tinha sido definitivamente abandonada, substituída pelas novas filosofia e ciência mecanicistas.1 Mas, por muito radical que o pensamento cartesiano fosse — e era-o de um modo que hoje somos incapazes de compreender inteiramente —, em alguns aspectos manteve-se semelhante ao pensamento de inspiração medieval que substituiu. Na realidade, o pensamento de Descartes pode ser visto como uma tentativa de conciliar a religião e a metafísica tradicional com a nova ciência. Recordemos que Descartes tornou a matéria objeto da ciência, no sentido moderno do termo, mas manteve a mente — o cogito — firmemente no campo da metafísica, que, segundo ele, é também capaz de produzir conhecimento indubitável de outras verdades fundamentais, como Deus e o mundo.
Hume tem pouca simpatia por este género de filosofia, que pretende não haver limites para as capacidades cognitivas da razão quando corretamente utilizada, e ser possível ter conhecimento mesmo dos assuntos mais complexos e difíceis. De facto, a filosofia de Descartes é um bom exemplo do tipo de filosofia a que Hume se opõe vigorosamente.
A metafísica como estudo da natureza humana e como ciência empírica
Segundo Hume, a metafísica tradicional é completamente especulativa, não tem por base a experiência e tem por objetivo justificar as superstições populares. Isto leva-o a combater este género de metafísica e a fazer aquilo a que chama a verdadeira metafísica. Hume associa a verdadeira metafísica ao estudo da natureza humana, que tem por objetivo fazer a geografia mental ou anatomia da mente, isto é, determinar os princípios mais gerais da mente, compreender como dão origem às nossas crenças e comportamentos, permitindo assim estabelecer as capacidades e os limites do entendimento humano. Por este motivo, o estudo da natureza humana constitui, segundo Hume, a ciência fundamental, uma vez que todas as outras ciências, como são o resultado do raciocínio humano, de uma forma ou de outra, dependem dela.
Como deve esta nova metafísica ser feita? Os filósofos que Hume critica, embora pensassem estar a descobrir os princípios fundamentais do conhecimento e da realidade, caíram no erro de levar os seus raciocínios mais longe do que a experiência permite e, por isso, a sua metafísica não é uma ciência. Para que a metafísica seja uma ciência é necessário fundá-la na observação e na experiência. A verdadeira metafísica não é uma investigação a priori, como a que Descartes fazia, mas uma ciência empírica. Hume pretende fazer naquilo a que chama filosofia moral — as atuais ciências humanas, como a psicologia, a economia, a ciência política, e disciplinas que hoje incluímos na filosofia, como a epistemologia, a metafísica, a lógica ou a ética — o que Newton fez com sucesso na filosofia natural — isto é, a física — e, desse modo, libertar o estudo da natureza humana da especulação e torná-lo uma investigação empírica, que, a partir da observação e da experiência, chegue a princípios que permitam explicar o conhecimento e a conduta humanas. Um aspeto importante deste método, tanto na versão de Newton como na de Hume, é que a busca por princípios deve terminar quando se atinge os princípios mais gerais que a experiência permite. Os limites do conhecimento são, assim, os limites da experiência e hipóteses sobre causas ocultas — que não podem ser observadas — estão completamente excluídas. Foi, de resto, pensa Hume, o facto de terem deixado de formular hipóteses sem apoio na experiência, de terem deixado de especular, que permitiu aos filósofos naturais explicar com tanto sucesso o mundo físico. A pretensão de Hume é fazer exatamente o mesmo na filosofia moral.2
Em resumo, a verdadeira metafísica de que Hume fala não é uma investigação a priori sobre os primeiros princípios, mas um estudo empírico da mente, que usa o método experimental e cujas hipóteses se devem manter nos limites da experiência. Este estudo irá revelar as capacidades e os limites da mente e, desse modo, estabelecer com rigor o que é possível conhecer. Por este motivo, Hume é considerado um dos primeiros defensores do naturalismo, uma perspetiva polémica aceite por vários filósofos e cientistas da atualidade, segundo a qual só a ciência — e nalguns casos, só as ciências naturais — constitui conhecimento.
O projeto de Hume, portanto, consiste, por um lado, na eliminação da metafísica tradicional e, por outro, na sua substituição pela ciência do homem. Concomitantemente, a sua filosofia tem uma fase essencialmente crítica, cujo objetivo é eliminar as teorias erradas da filosofia tradicional, e uma fase construtiva, constituída pelos princípios e teorias a que chega por intermédio da sua ciência do homem.
A teoria das ideias
Para Hume, como vimos, o projeto da ciência do homem, ou a investigação da natureza humana, consiste na análise da mente. Só fazendo essa análise, pensa ele, é possível saber a que questões é a mente capaz de dar resposta e quais as que se encontram fora do seu alcance e das suas capacidades. Recordemos, no entanto, que Hume pensa que este estudo deve basear-se na experiência e na observação. Ora, aquilo de que a mente tem experiência — pelo menos, experiência direta e imediata — é dos seus próprios conteúdos. Por esse motivo, o estudo da natureza humana centra-se nos conteúdos da mente e não nos objetos que lhe são exteriores.


Álvaro Nunes, O empirismo de David Hume


sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Texto para resumo Gustavo 11A e Érica 11I



O Cogito

Alguns vêem no Cogito não a conclusão de um argumento, mas uma espécie de descoberta epistémica: uma verdade indubitável na qual ele tropeça. Outros preocupam-se em saber se Descartes pode ter direito ao ‘Eu’ presente no Cogito. Não terá ele de direito apenas a qualquer coisa de menos, a dizer somente que o pensamento ocorre e não que quem o pensa é o próprio Descartes?

O círculo cartesiano

No entanto, Descartes tenta ir para a frente, olhando para novas verdades dentro da sua mente. Pensa um pouco acerca da natureza da dúvida e conclui que a dúvida é uma forma de imperfeição, em comparação com o conhecimento. A reflexão sobre a própria ideia de perfeição condu-lo a uma das várias provas da existência de Deus. Dada a natureza das suas várias dúvidas, Descartes sabe que não é um ser perfeito. Não obstante, tem a ideia de perfeição e essa ideia não lhe pode ter vindo de si mesmo ou de qualquer ser imperfeito. Pode apenas vir de um ser perfeito, nomeadamente, de Deus. Esta linha de pensamento conduz a uma versão do argumento ontológico de Anselmo. A ideia que Descartes tem de Deus é a de um ser com todas as perfeições. A existência é uma forma de perfeição; portanto, Deus tem de existir. Pensar em Deus como não existindo é como pensar num triângulo sem três lados. Assim como possuir três lados está no conceito de triangularidade, existência está no conceito de Deus. Se compreendemos bem a ideia de Deus, temos de aceitar que Deus existe.
O engano, nota Descartes, é uma forma de imperfeição e, por isso, conclui que Deus não pode ser enganador. Logo, podemos confiar nas nossas percepções claras e distintas; não somos sistematicamente enganados e a verdade tem de estar ao alcance das nossas capacidades. Reconstruir um sistema de crenças enraízado na percepção clara e distinta é a tarefa [seguinte].
Muitos notaram nesta linha de argumento um círculo demasiado fechado. Chegamos ao conhecimento de que Deus existe e não é enganador apenas porque aceitámos uma série de percepções claras e distintas. Sabemos que as nossas percepções claras e distintas são fiáveis porque Deus existe e não é enganador. Mas não depende a nossa fé nas percepções claras e distintas da prova de que Deus existe e não pressupõe essa prova a veracidade das nossas percepções claras e distintas?
O problema (…) é o de que o conhecimento parece ser uma coisa frágil. Descartes tem certamente sucesso na parte negativa do seu projecto, arrasando os fundamentos do conhecimento com os argumentos cépticos (…). No entanto, o seu esforço para erguer tudo a partir do nada constitui uma espécie de falhanço. Mas o seu objectivo principal, o de mostrar que uma compreensão científica do mundo é possível é algo que nós, modernos, tomamos como adquirido demasiado facilmente.

James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy Books. London & New York: Continuum, 2006.

Trad. Carlos Marques.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Texto para resumo Bernardo 11A e Ana Carolina 11I

No Discurso do Método, [Descartes] conta-nos como na sua juventude se sentia perturbado com o espectro da incerteza:

[…] encontrava-me embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não ter tido outro proveito, ao tentar instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. E, no entanto, estive numa das escolas mais célebres da Europa…
E, enfim, o nosso século parecia-me tão florescente e fértil de bons espíritos quanto qualquer um dos precedentes. Por isso, tomei a liberdade de tomar o meu juízo como universal, concluindo que não há nenhuma doutrina no mundo que fosse como até então me fizeram crer.


A resposta de Descartes a esta situação foi procurar os fundamentos sobre os quais a verdade podia ser assegurada. Por isso, nas suas Meditações Sobre Filosofia Primeira, ele faz uso de um método de dúvida radical, cujo fim é o de estabelecer pelo menos alguma crença que possa então servir como alicerce para o conhecimento. A dúvida radical significa apenas isso. Como diz Descartes, 'A mais pequena dúvida será suficiente para me fazer rejeitar qualquer das minhas crenças.'
O argumento de Descartes é um dos mais famosos na história da filosofia. Ele mostra que nos podemos enganar acerca de certos dados dos sentidos; que é possível colocar toda a nossa experiência dos sentidos sob dúvida - podemos, por exemplo, estar a sonhar sem o saber; e, de modo mais radical, que é possível que nada exista para além das nossas experiências sensíveis - podemos ter sido iludidos por um demónio maligno.
Contudo, este processo também mostra que há uma crença renitente. Por mais que apliquemos o método da dúvida, não é possível duvidar de que existimos. O próprio facto de se duvidar significa que tem de haver um 'Eu' que está a duvidar. É isto o famoso
cogito de Descartes:

Mas persuadi-me de que não havia nada no mundo, nenhum céu, nenhuma terra, nenhuns espíritos, nenhuns corpos. E não me persuadi também de que eu próprio não existia? Pelo contrário, se me persuadi de alguma coisa, eu existia com certeza. […] De maneira que, depois de ter-se pesado e repesado muito bem tudo isto, deve por último concluir-se que esta proposição Eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira sempre que proferida por mim ou concebida pelo espírito.

Descartes, porém, tem agora um problema. Tendo estabelecido a existência de uma entidade pensante (se realmente foi estabelecida), como recupera o resto do mundo? A resposta, de modo breve, é que não é capaz de o fazer; pelo menos, de modo a satisfazer um filósofo dos nossos tempos. A sua tentativa envolve o emprego de uma versão do argumento ontológico com o objectivo de provar a existência de Deus, argumentando depois que, como Deus não é enganador, não somos sistematicamente enganados sobre as coisas que percebemos claramente. É razoável assim retomar algumas das nossas crenças acerca do mundo exterior.

Ophelia Benson & Jeremy Stangroom, Why Truth Matters (London, 2006, pps. 26-27). Tradução Carlos Marques.

sábado, 4 de novembro de 2023

Texto para resumo - Ernesto 11A e Beatriz Aires 11I



Conversa entre Alberto e Sofia. Assunto: Descartes

“René Descartes” nasceu em 1596 e viveu em vários países da Europa ao longo da vida. Já na sua juventude, sentia o forte desejo de tomar conhecimento da natureza do homem e do universo. Mas depois de ter estudado filosofia tornou-se consciente principalmente da sua própria ignorância.
— Mais ou menos como Sócrates?
— Sim, mais ou menos assim. Tal como Sócrates, estava convencido de que só a razão nos pode dar conhecimento seguro. Nunca podemos confiar no que está escrito em livros antigos. Nem sequer podemos confiar no que os nossos sentidos nos transmitem. — Platão era da mesma opinião. Ele achava que só a razão nos pode dar um saber sólido. — Exato. De Sócrates e Platão, através de S. Agostinho, há uma linha direta até Descartes. Todos eles eram racionalistas convictos. Para eles, a razão era a única fonte segura de conhecimento. Após muitos estudos, Descartes reconheceu que não era forçoso confiar no saber transmitido na Idade Média. Podes fazer uma comparação com Sócrates, que não confiava nas conceções mais difundidas com que se defrontava na Ágora em Atenas. E o que é que se faz neste caso, Sofia? Sabes responder-me? — Começa-se a filosofar por si mesmo. — Exato. Descartes decidiu então viajar pela Europa — tal como Sócrates, que passou a vida em diálogo com homens de Atenas. Ele próprio relata que a partir dessa altura só queria procurar o saber que podia encontrar em si mesmo ou “no grande livro do mundo”. Por isso, entrou para o exército e pôde permanecer em diversos locais da Europa Central. Mais tarde, passou alguns anos em Paris. Em Maio de 1629, viajou para os Países Baixos, onde viveu durante quase vinte anos, enquanto trabalhava nos seus escritos filosóficos. Em 1649, a rainha
Cristina convidou-o a viver na Suécia. Mas esta estadia “no país dos ursos, do gelo e dos rochedos”, como ele lhe chamou, provocou-lhe uma pneumonia, e morreu no Inverno de 1650. — Então só tinha 54 anos! — Mas ainda havia de ser muito importante para a filosofia, mesmo após a sua morte. Sem exagero, podemos dizer que Descartes foi o fundador da filosofia da época moderna. Depois da imponente redescoberta do homem e da natureza no Renascimento, surgiu de novo a necessidade de reunir todas as ideias contemporâneas num único “sistema filosófico” coerente. O primeiro grande construtor de sistema foi “Descartes”, e seguiram-se  “Espinosa” e “Leibniz”, “Locke” e “Berkeley”, “Hume” e “Kant”.
— O que é que entendes por “sistema filosófico”?
— Entendo uma filosofia construída desde a base e que procura encontrar uma resposta para todas as questões filosóficas importantes. A Antiguidade teve grandes construtores de sistemas como Platão e Aristóteles. A Idade Média teve S. Tomás de Aquino, que queria fazer uma ponte entre a filosofia de Aristóteles e a teologia cristã. Veio depois o Renascimento — com uma mistura de velhas e novas ideias sobre a natureza e a ciência, Deus e os homens. Só no século XVII a filosofia tentou de novo pôr em sistema as novas ideias. O primeiro a fazer esta tentativa foi Descartes. Ele deu o sinal de partida para aquilo que se tornaria o projeto filosófico mais importante para as gerações seguintes. Antes de mais, preocupava-o o que nós podemos saber, ou seja, a questão da “solidez do nosso conhecimento”. A segunda grande questão que o preocupava era a “relação entre corpo e alma”. Estas duas problemáticas determinariam a discussão filosófica dos cento e cinquenta anos seguintes.
— Então ele estava adiantado em relação à época. — Mas as questões já andavam no ar na época. Na questão de como podemos alcançar saber seguro, alguns exprimiram o seu total “ceticismo” filosófico.


 Achavam que os homens tinham de se conformar com o fato de nada saberem. Mas Descartes não se conformou com isso. Se o tivesse feito, não teria sido um verdadeiro filósofo. De novo, podemos fazer um paralelismo com Sócrates, que não se contentou com o ceticismo dos sofistas. Justamente na época de Descartes, a nova ciência da natureza desenvolvera um método que havia de fornecer uma descrição totalmente segura e exata dos processos naturais. Descartes interrogou-se se não havia um método igualmente seguro e Exato para a reflexão filosófica.
— Entendo.
— Mas esse era apenas um dos problemas. A nova física colocara também a questão sobre a natureza da matéria, ou seja, sobre o que determina os processos físicos na natureza. Cada vez mais pessoas defendiam uma compreensão materialista da natureza. Mas quanto mais o mundo físico era concebido de forma mecanicista, mais urgente se tornava a questão da relação entre corpo e alma. Antes do século XVII, a alma fora descrita geralmente como uma espécie de “espírito vital” que percorria todos os seres vivos. (...)
Foi só no século XVII que os filósofos estabeleceram uma separação radical entre alma e corpo, porque todos os objetos físicos — também um corpo animal ou humano — eram explicados como processos mecânicos. Mas a alma humana não podia ser uma parte desta “máquina fisiológica”? O que era então? Tinha que se esclarecer como é que algo “espiritual” podia dar origem a um processo mecânico. — Essa é realmente uma ideia bastante estranha.
— O que queres dizer com isso?
 — Eu decido levantar o meu braço — e o braço eleva-se. Ou eu decido correr para o autocarro e imediatamente as minhas pernas começam a mover-se. Por vezes, penso numa coisa triste: as lágrimas vêm-me logo aos olhos. Assim, tem de haver alguma ligação misteriosa entre o corpo e a consciência. — Foi precisamente este problema que levou Descartes a refletir. (...) ele estava convencido de que há uma divisão rígida entre espírito e matéria.


Jostein Gaarder, O mundo de Sofia



Regras para realizar um bom resumo de texto.

1. Breve apresentação dos autores de que fala o texto.
2. procurar o significado de alguns conceitos que sejam importantes no texto.
3. Esclarecer sobre o tema do texto.
4. Desenvolver as linhas principais, as teses, os exemplos que se dão para apoiar as teses e as razões apresentadas.
5. Conclusão geral
6. Comentário e breve apreciação fundamentada em relação às ideias que são desenvolvidas no texto e à sua forma.