segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Texto para resumo e análise Leonor Amorim 11E




Picasso

— Aí, tens toda a razão. Mas talvez Hume seja justamente um filósofo que pensa de forma um pouco diferente. Mais do que qualquer outro, ele tem como ponto de partida o mundo quotidiano. Acho que Hume tinha um sentido muito apurado para o modo como as crianças — ou seja, os novos cidadãos do mundo — vivem a realidade.— Eu vou conter-me.— Enquanto empirista, Hume via como sua tarefa a supressão de todos os conceitos e construções especulativas pouco claros que os teus homens tinham concebido até então. Nessa altura, estava em circulação na escrita e em conversas todo o tipo de conceitos da Idade Média e dos filósofos racionalistas do século XVII. Hume queria regressar à sensibilidade humana original do mundo. Segundo ele, nenhuma filosofia pode alguma vez ignorar as experiências quotidianas ou dar-nos regras de comportamento diferentes daquelas que obtemos por meio da nossa reflexão sobre a vida quotidiana.— Até agora isso parece aliciante. Podias dar exemplos?— Na época de Hume, estava muito difundida a ideia de que existem anjos. Por anjo, entendemos uma figura humana com asas. Alguma vez viste um ser desses, Sofia? — Não.— Mas já viste uma figura humana?
— Que pergunta tão boba.— E também já viste asas?— Claro, mas nunca num homem.— Segundo Hume, os “anjos” são uma ideia complexa. Esta ideia é constituída por duas experiências diferentes que não estão juntas na realidade, mas foram ligadas na fantasia humana. Por outras palavras, a ideia é falsa e deve ser rejeitada. Do mesmo modo, temos de fazer uma arrumação em todos os nossos pensamentos e ideias. Tal como Hume afirmou: “Pegando ao acaso em qualquer volume acerca de teologia ou filosofia da escola, devemos perguntar: Contém algum raciocínio abstrato acerca da grandeza ou dos números? Não. Contém algum raciocínio sobre fatos e sobre a realidade baseado na experiência? Não. Então, lançai-o à fogueira porque só contém ilusão e aparência.”— Bastante drástico. — Mas há o mundo, Sofia. Mais fresco e nítido nos seus contornos do que anteriormente. Hume queria regressar ao modo como uma criança vê o mundo — antes de ideias e reflexões ocuparem espaço na mente. Não disseste que muitos filósofos, dos quais ouviste falar, vivem no seu próprio mundo e que o mundo real te interessa mais?— Sim, mais ou menos isso. — Hume poderia ter dito exatamente o mesmo. Mas observemos mais exatamente o seu raciocínio.
— Estou a ouvir.— Hume verifica em primeiro lugar que o homem possui por um lado “impressões”, e por outro “ideias”. Por impressão, ele entende a sensação imediata da realidade exterior. Por ideia ele entende a recordação dessa sensação.— Exemplos, por favor.— Se te queimas num fogão quente, tens uma impressão imediata. Mais tarde, podes recordar que te queimaste. É a isso que Hume chama ideia. A diferença é que a impressão é mais forte e viva do que a recordação posterior da impressão. Podes dizer que a impressão sensível é o original e a ideia ou recordação a cópia pálida. Porque, afinal, a impressão é a causa direta da ideia que é conservada na mente.
— Até agora estou a acompanhar bem.— Mais adiante, Hume sublinha que tanto uma impressão como uma ideia podem ser ou “simples ou complexas”. Ainda te lembras que em Locke falamos de uma maçã. A experiência imediata de uma maçã é também uma impressão complexa. Assim, a ideia de uma maçã é também uma ideia complexa.— Desculpa a interrupção, mas isso é muito importante?
— Se é! Apesar de os filósofos se terem preocupado com uma série de problemas aparentes, não podes agora desistir quando se trata de construir um raciocínio. Hume teria certamente dado razão a Descartes quanto à importância de se construir um raciocínio a partir da base.— Para Hume, a questão é que, por vezes, podemos juntar coisas sem que exista um objeto composto correspondente na realidade. Assim, surgem ideias falsas de coisas que não existem na natureza. Já mencionamos os anjos. E, antes disso, já se tinha falado de crocofantes. Um outro exemplo é o Pégaso, um cavalo com asas. Em todos estes exemplos, temos de reconhecer que a nossa mente fez uma construção no vazio. Retirou as asas de uma impressão e os cavalos de outra. Todos os elementos foram percebidos uma vez e por isso entraram no palco da mente como impressões verdadeiras. No fundo, a mente não inventou nada. A mente agarrou na tesoura e na cola e construiu ideias falsas.— Entendo. E agora também compreendo que isso pode ser importante.— Ainda bem. Hume quer examinar cada ideia e descobrir se ela é composta de um modo que não encontramos na realidade. Ele pergunta: em que impressões tem origem esta ideia? Em primeiro lugar, ele tem que determinar de que ideias simples é composto um conceito. Deste modo, obtém um método crítico para analisar as ideias humanas. E é assim que quer organizar os nossos pensamentos e ideias.— Tens um ou dois exemplos?— Na época de Hume, muitas pessoas tinham uma ideia clara do paraíso. Talvez ainda te lembres que Descartes explicara que ideias claras e evidentes em si podiam ser uma garantia deque existe uma correspondência na realidade.
— Como já disse, não sou esquecida.— É-nos imediatamente claro que “paraíso” é uma ideia extremamente complexa. Vou referir apenas alguns elementos: no “paraíso” há um “portão de pérolas”, há “estradas de ouro” e “exércitos de anjos” — e assim por diante. Mas ainda não examinamos tudo nos seus elementos particulares. Porque também “portão de pérolas”, “estradas de ouro” e “exércitos de anjos” são ideias compostas. Só quando verificamos que a nossa ideia complexa de paraíso é constituída por ideias simples como “pérola”, “portão”, “estrada”, “ouro”, “figura vestida de branco” e “asa”, é que podemos perguntar se já tivemos de fato alguma vez “impressões simples ”correspondentes.— E temos. Mas depois montamos todas as impressões simples numa ilusão.— Sim, Exato, porque quando sonhamos, usamos, por assim dizer, tesoura e cola. Mas Hume sublinha que toda a matéria, a partir da qual formamos as nossas ilusões, chega à nossa mente na forma de impressões simples. Uma pessoa que nunca tenha visto ouro também não poderá imaginar nenhuma estrada de ouro. — Ele é muito esperto. E quanto a Descartes e a sua ideia clara de Deus?

Jostein Gaarder, O mundo de Sofia

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Matriz para o ensaio filosófico

 


1.       Realização no dia 15 de dezembro (quinta feira)

2.       Duração 60m

3.       Mínimo 30 linhas/máximo 60 linhas

F     Folha A4 Pautada Nome do aluno/turma/nº e o problema a ser tratado


4.       Avaliação: Competência: Argumentação/Problematização/Comunicação

5.       Estrutura:

1º - Apresentação do problema e da razão porque escolheu esse problema.

2º - Apresentação da sua posição pessoal

3º - Apresentação das razões pelas quais considera a sua posição preferível em relação a outras posições possíveis.

4º - Apresentação de alguns problemas que podem ser colocados à posição que tomou.

5º - Conclusão

6.       Critérios de avaliação:

a)       Discurso bem estruturado/coerência e consistência entre as várias partes – 30%

b)      Argumentação forte – 30%

c)       Boa apresentação e desenvolvimento do problema – 25%

d)      Correção escrita – 15%

Problemas filosóficos a serem discutidos:

1.       Será que existe um Deus absoluto e criador?

2.       Seremos livres ou temos um destino já predeterminado?

3.       O que faz a nossa identidade? O nosso corpo? A nossa mente? Ambos?

4.       Será benéfico legalizar a Eutanásia?

5.       O que é a Arte?

6.       Como posso ter a certeza dos meus conhecimentos?

C     Será a Internet um incentivo ao narcisismo? Será o narcisismo perigoso?


 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Texto para resumo João 11E


Já David Hume foi bastante crítico em relação a Descartes nesta questão (de haver um conhecimento absoluto) e avançou com a sua própria tese sobre o assunto. Diz Bertrand Russel sobre o escocês:

"O que preocupa Hume é o conhecimento incerto, tal como o que é obtido de dados empíricos por inferências que não são demonstrativas. Isso inclui todo o nosso conhecimento a respeito do futuro, e a respeito de partes não observadas do passado e do presente. De facto, inclui tudo excepto, por um lado, observação directa, e, por outro, a lógica e a matemática."

Em primeiro lugar, David Hume separa conhecimento de relação de ideias e conhecimento de factos ou probabilidade. Se no conhecimento as “relações de ideias são dependentes das próprias ideias”, na probabilidade existem três relações: a identidade, as situações no tempo e lugar e a causalidade.

Assim, enquanto a negação do conhecimento de relação de ideias implica contradição, na probabilidade (conhecimento dos factos), a negação é igualmente uma probabilidade. Desse modo, as descobertas filosóficas devem ser caracterizadas pelo probabilismo, pois o Homem tem várias limitações temporais e perceptivas. Ou seja, todas as explicações devem ser vistas como tentativas destinadas a serem substituídas por outras, o que dá espaço à opinião e à controvérsia.

David Hume rejeita “todo o tipo de ilusões metafísicas”, toda a crença em milagres. Segundo ele, os milagres violam as leis da Natureza, que se baseiam na experiência.

No entanto, Hume, não é um céptico radical que negue totalmente a capacidade do sujeito para conhecer algo, o que acaba por ser uma contradição, pois ao afirmar a impossibilidade de alcançar o conhecimento, já está a concluir algo – conhecer que o conhecimento não é possível.

Hume nega a existência de princípios evidentes inatos em nós. Para ele, todo o conhecimento é como que uma cópia de algo, cujo objecto já tivemos acesso de alguma maneira.

Hume põe ainda o problema da causalidade em cima da mesa. Ele refuta o princípio da causalidade segundo o qual todas as acções têm uma relação causa efeito, submetendo-o a uma análise critica bastante rigorosa, baseando-se na sua teoria de conhecimento segundo a qual sem impressão sensível não há conhecimento, visto todas as ideias derivarem das sensações, à qual deve corresponder uma impressão.

A partir daí, ele negou que possamos fazer qualquer ideia de causalidade pois ela é apenas resultado do nosso hábito mental, visto que na Natureza nada nos mostra que sempre que acontece alguma coisa, tem que acontecer outra.

Só temos essa ideia porque nos habituamos a ver a sucessão de fenómenos um por um, o que nos induziu em erro.

Por exemplo, quando está vento e uma árvore abana dizemos que esta é uma relação causa efeito, quando nada nos prova que assim é. Apenas o dizemos porque nos habituamos a ver os dois fenómenos ocorrer muitas vezes simultaneamente. A experiência até nos pode dizer que o vento pôs os galhos da árvore em movimento, mas ela nunca nos diz nada sobre acontecimentos futuros, com os quais ainda não tivemos qualquer contacto: única fonte de conhecimento valida. Isto porque a inferência causais estão sempre sujeitas ao erro perante novos objectos, novos sujeitos e novas situações, que podem mudar as ideias que temos em nós. Desse modo, vemos que para Hume, o conhecimento só pode corresponder a acções passadas, ou quando muito actuais e nunca futuras. Para ele, “cada caso, é um caso” e nada nos diz o que vai acontecer amanhã.

Esta questão é de grande importância para David Hume, porque o racionalismo de Descartes apoia-se sobretudo nas relações causa efeito.

Provando que não existem relações na Natureza e apenas fenómenos desligados uns dos outros, Hume rejeita, o inatismo cartesiano, introduzindo um dado novo nas teses empiristas afirmando que a identidade entre a ordem das coisas e das ideias é fruto dos nossos hábitos mentais ou na crença que existe uma ligação necessária entre os fenómenos.

A partir daí, Hume nega as três verdades de René Descartes (o ser, Deus e o mundo).

Em relação ao “eu”, que Descartes provara através da intuição, Hume não acredita que o pensamento intuitivo seja um caminho seguro para a verdade, devido à impossibilidade do Homem poder enumerar causas.

Todos nós mudados em muitos aspectos à medida que os anos passam, sem que nós próprios mudemos em si mesmo. No entanto, Hume nega a distinção entre os vários aspectos de uma pessoa e o sujeito que transporta essas mesmas características. Ou seja, para o escocês, quando fazemos uma introspecção, notamos um conjunto de percepções, sentimentos, memorias e pensamento, mas nunca nos apercebemos de algo a que possamos chamar de “eu”. Ou seja, o ser humano não passa de um conjunto de “percepções transitórias” que a nada pertencem e de um composto de elementos relacionados em permanente mudança.

Depois, relativamente à questão da existência de Deus, que Descartes provara baseando-se em que tudo tem uma causa, e a primeira dessas causas era Deus,

Hume diz ser impossível conhecer Deus pois a provas cartesianas estão fundadas na existência de ideias inatas, originárias da razão, nas quais não acredita. Ou seja, para ele o Homem não pode conhecer algo do qual não tem uma única percepção.

Por fim, Hume nega igualmente a existência do mundo exterior que para ele não passa de uma crença. E é uma crença que não podemos eliminar, mas que também não podemos provar por qualquer tipo de argumento, seja ele dedutivo ou indutivo.

David Hume também refuta a ideia de um conhecimento universal, claro e distinto. Visto que dentro das limitações o nosso conhecimento é sempre incompleto, a realidade reduz-se aos fenómenos aos quais os nossos sentidos têm acesso, sendo que cada um pode ter sensações diferentes nessa experiência, abrindo-se espaço à subjectividade.

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Textos para os trabalhos sobre David Hume


1. Leitura de um dos textos para cada um dos trabalhos. retirar as ideias principais do texto e explicar. 

2. Elaborar um comentário crítico aos textos. 

Biografia do autor e principais tópicos da sua filosofia.

3. Quem escolher o Doc 1 tem que falar no empirismo e na origem das ideias; quem escolher o Doc 2 tem que falar do empirismo e na relação de causa-efeito.

4.Avaliação do diapositivo e da exposição oral.

5. Datas de entrega do diapositivo e exposição oral:  13 de Dezembro

DOC1

"Ensaio sobre o entendimento humano"

David Hume

Primeira parte

SECÇÃO II

DA ORIGEM DAS IDEIAS

"Cada um admitirá prontamente que há uma diferença considerável entre as perceções do espírito, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado, e quando depois recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de sua imaginação. Estas faculdades podem imitar ou copiar as perceções dos sentidos, porém nunca podem alcançar integralmente a força e a vivacidade da sensação original. O máximo que podemos dizer delas, mesmo quando atuam com seu maior vigor, é que representam seu objeto de um modo tão vivo que quase podemos dizer que o vemos ou que o sentimos. Mas, a menos que o espírito esteja perturbado por doença ou loucura, nunca chegam a tal grau de vivacidade que não seja possível discernir as perceções dos objetos. Todas as cores da poesia, apesar de esplêndidas, nunca podem pintar os objetos naturais de tal modo que se tome a descrição pela paisagem real. O pensamento mais vivo é sempre inferior à sensação mais embaçada. Podemos observar uma distinção semelhante em todas as outras perceções do espírito. Um homem à mercê dum ataque de cólera é estimulado de maneira muito diferente da de um outro que apenas pensa nessa emoção. Se vós me dizeis que certa pessoa está amando, compreendo facilmente o que quereis dizer-me e formo uma conceção precisa de sua situação, porém nunca posso confundir esta ideia com as desordens e as agitações reais da paixão. Quando refletimos sobre nossas sensações e impressões passadas, nosso pensamento é um reflexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porém as cores que emprega são fracas e embaçadas em comparação com aquelas que revestiam nossas perceções originais. Não é necessário possuir discernimento sutil nem predisposição metafísica para assinalar a diferença que há entre elas. Podemos, por conseguinte, dividir todas as perceções do espírito em duas classes ou espécies, que se distinguem por seus diferentes graus de força e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente denominadas pensamentos ou ideias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosóficos era necessário compreendê-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-nos, portanto, usar um pouco de liberdade e denominá-las impressões, empre gando esta palavra num sentido de algum modo diferente do usual. Pelo termo impressão entendo, pois, todas as nossas perceções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou que remos. E as impressões diferenciam-se das ideias, que são as perceções menos vivas, das quais temos consciência, quando refletimos sobre quais quer das sensações ou dos movimentos acima mencionados.

2 A primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento humano, que não apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas também nem sempre é reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar formas e aparências incongruentes não causam à imaginação mais embaraço do que conceber os objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num só planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num instante às regiões mais distantes do Universo, ou mesmo, além do Universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a Natureza se encontra em total confusão. Pode -se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradição. Entretanto, embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas ideias compatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois o sentimento que temos de nós mesmos nos permite conceber a virtude e podemos uni-la à figura e forma de um cavalo, que é um animal bem conhecido. Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagem filosófica: todas as nossas ideias ou perceções mais fracas são cópias de nossas impressões ou perceções mais vivas. Para prová-lo, espero que serão suficientes os dois argumentos seguintes. Primeiro, se analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais compostos ou sublimes que sejam, sempre verificamos que se reduzem a ideias tão simples como eram as cópias de sensações precedentes. Mesmo as ideias que, à primeira vista, parecem mais distantes desta origem mostram-se, sob um escrutínio minucioso, derivadas dela. A ideia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria. Podemos continuar esta investigação até a extensão que quisermos, e acharemos sempre que cada ideia que examinamos é cópia de uma impressão semelhante. Aqueles que dizem que esta afirmação não é universalmente verdadeira, nem sem exceção, têm apenas um método, e em verdade fácil, para refutá-la: mostrar uma ideia que, em sua opinião, não deriva desta fonte. Incumbir-nos-ia então, se quiséssemos preservar nossa doutrina, de mostrar a impressão ou perceção mais viva que lhe corresponde. Segundo, se ocorre que o defeito de um órgão prive uma pessoa de uma classe de sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar ideias correspondentes. Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um surdo dos sons. Restaurai a um deles um dos sentidos de que carecem: ao abrirdes as portas às sensações, possibilitais também a entrada das ideias, e a pessoa não terá mais dificuldade para conceber aqueles objetos. O mesmo fenômeno ocorre quando o objeto apropriado para estimular qualquer sensação nunca foi aplicado ao órgão do sentido. Um lapão ou um negro, por exemplo, não têm nenhuma noção do sabor do vinho. Apesar de haver poucos ou nenhum caso de semelhante deficiência no espírito, em que uma pessoa nunca sentiu ou que é completamente incapaz de um sentimento ou paixão próprios de sua espécie, constatamos, todavia, que a mesma observação ocorre em menor grau. Um homem de modos brandos não pode formar uma ideia de vingança ou de crueldade obstinada, nem um coração egoísta pode conceber facilmente os ápices da amizade e da generosidade. Em verdade, admitimos que outros seres podem possuir muitos sentidos dos quais não temos noção, porque as ideias destes sentidos nunca nos foram apresentadas pela única maneira por que uma ideia pode ter acesso ao espírito, isto é, mediante o sentimento e a sensação reais. Há, no entanto, um fenômeno contraditório que pode provar que não é absolutamente impossível que as ideias nasçam in dependentes de suas impressões correspondentes. Acredito que se concordaria facilmente que as várias ideias de cores diferentes que penetram pelos olhos, ou aquelas de sons conduzidas pelo ouvido, são realmente diferentes umas das outras, embora, ao mesmo tempo, parecidas. Ora, se isto é verdadeiro a respeito das diferentes cores, deve sê-lo igualmente para os diversos matizes da mesma cor; e cada matiz produz uma ideia diversa, independente das outras. Pois, se se negasse isto, seria possível, por contínua gradação dos matizes, passar insensivelmente de uma cor a outra completamente distante de série; se vós não admitis a distinção entre os intermediários, não podeis, sem absurdo, negar a identidade dos extremos. Suponde, então, uma pessoa que gozou do uso de sua visão durante trinta anos e se tornou perfeitamente familiarizada com cores de todos os gêneros, exceto com um matiz particular do azul, por exemplo, que nunca teve a sorte de ver. Colocai todos os diferentes matizes daquela cor, exceto aquele único, defronte daquela pessoa, decrescendo gradualmente do mais escuro ao mais claro. Certamente, ela perceberá um vazio onde falta este matiz, terá o sentimento de que há uma grande distância naquele lugar, entre as cores contíguas, mais do que em qualquer outro. Ora, pergunto se lhe seria possível, através de sua imaginação, preencher este vazio e dar nascimento à ideia deste matiz particular que, todavia, seus sentidos nunca lhe forneceram? Poucos leitores, creio eu, serão de opinião que ela não pode; e isto pode servir de prova que as ideias simples nem sempre derivam das impressões correspondentes, mas esse caso tão singular é apenas digno de observação e não merece que, unicamente por ele, modifiquemos nossa máxima geral."


DOC2

"Ensaio sobre o entendimento humano"

David Hume

Excerto da obra de David Hume, Ensaio sobre o entendimento humano,

SEGUNDA PARTE

"Entretanto, não chegamos ainda a nenhuma resposta satisfatória a respeito da primeira questão proposta. Cada solução gera uma nova questão tão difícil como a precedente e nos conduz a novas investigações. Quando se pergunta: qual é a natureza de todos os nossos raciocínios sobre os fatos? A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na relação de causa e efeito. Quando se pergunta: qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões sobre essa relação? Pode-se replicar numa palavra: a experiência. Mas, se ainda continuarmos com a disposição de esmiuçar o problema e insistirmos: qual é o fundamento de todas as conclusões derivadas da experiência? Esta pergunta implica uma nova questão que pode ser de solução e explicação mais difíceis. Os filósofos que se dão ares de sabedoria superior e suficiência têm uma tarefa difícil quando se defrontam com pessoas com disposições inquisitivas, que os desalojam de todos os esconderijos em que se refugiam, e que estão seguras de levá-los finalmente a um perigoso dilema, O melhor recurso para evitar esta confusão consiste em ter modestas pretensões e descobrir nós mesmos as dificuldades antes que nos sejam objetadas. Desta maneira, faremos de nossa ignorância uma virtude. Contentar-me-ei nesta seção com uma tarefa fácil: pretenderei apenas dar uma resposta negativa à questão aqui proposta. Digo, pois, que mesmo depois que temos experiência das operações de causa e de efeito, nossas conclusões desta experiência não estão fundadas sobre raciocínios ou sobre qualquer processo do entendimento. Devemos trata r de explicar e defender esta posição. Certamente, deve -se admitir que a natureza nos tem mantido a uma grande distância de todos os seus segredos, e que apenas nos tem concedido o conhecimento de algumas qualidades superficiais dos objetos, enquanto ela nos esconde os poderes e princípios dos quais depende inteiramente a ação desses objetos. Nossos sentidos nos informam a cor, o peso e a consistência do pão, porém, nem os sentidos e nem a razão jamais podem informar-nos sobre as qualidades que o fazem apropriado para alimentar e sustentar o corpo humano. A visão e o tato nos dão uma ideia do movimento real dos corpos, porém não podemos formar o mais remoto conceito da maravilhosa força ou poder que é capaz de manter indefinidamente em movimento um corpo, e que este nunca a perde, mas a comunica a outros. Mas, não obstante esta ignorância dos poderes1 e princípios naturais, sempre presumimos quando vemos qualidades sensíveis análogas que elas têm poderes ocultos análogos, e esperamos que a estas seguirão efeitos semelhantes àqueles que já temos experimentado. Se nos fosse mostrado um corpo de cor e consistência análogas às do pão que havíamos comido anteriormente, não teríamos nenhum escrúpulo em repetir o experimento, prevendo com certeza que ele nos alimenta rá e nos sustentará de maneira semelhante. Ora, eis um processo do espírito e do pensamento cujo fundamento gostaria de conhecer. Toda a gente está de acordo que não se conhece nenhuma conexão entre as qualidades sensíveis e os poderes ocultos e, por conseguinte, o espírito não é levado a tirar uma conclusão sobre a conjunção constante e regular daquelas, tendo por base algo que possa conhecer na natureza destas. Pode-se admitir que a experiência passada dá somente uma informação direta e segura sobre determinados objetos em determinados períodos do tempo, dos quais ela teve conhecimento. Todavia, é esta a principal questão sobre a qual gostaria de insistir: porque esta experiência tem de ser estendida a tempos futuros e a outros objetos que, pelo que sabemos, unicamente são similares em aparência. O pão que outrora comi alimentou-me, isto é, um corpo dotado de tais qualidades sensíveis estava, a este tempo, dotado de tais poderes desconhecidos. Mas, segue -se daí que este outro pão deve também alimentar-me como ocorreu na outra vez, e que qualidades sensíveis semelhantes devem sempre ser acompanhadas de poderes ocultos semelhantes? A consequência não parece de nenhum modo necessária. Pelo menos, deve-se reconhecer que aqui o espírito tira uma consequência; que deu um certo passo; que há um processo do pensamento e uma inferência que necessitam de uma explicação. Estas duas proposições não são de nenhum modo iguais: encontrei que tal objeto sempre tem sido acompanhado por tal efeito, e prevejo que outros objetos que são em aparência semelhantes, serão acompanhados por efeitos semelhantes. Concederei, se vós permitis, que uma das proposições pode ser legitimamente inferida da outra: sei, de fato, que ela sempre se infere. Mas, se vós insistis em que a inferência é feita por uma cadeia de raciocínios, desejaria que vós construísseis este raciocínio. A conexão entre estas proposições não é intuitiva. Requer-se um termo médio que permita ao espírito extrair tal inferência, se é que, verdadeiramente, é extraída mediante raciocínio e argumentos. Qual é o termo médio? Devo confessar, é algo que ultrapassa minha compreensão, e cabe mostrá-lo por aqueles que afirmam que realmente existe e que é a origem de todas as nossas conclusões acerca dos fatos. Certamente, este argumento negativo pode tornar-se inteiramente convincente no decorrer do tempo, se muitos filósofos hábeis e perspicazes dirigirem suas investigações neste sentido, e se ninguém for capaz de descobrir alguma proposição conectiva ou algum degrau intermediário que apoie o entendimento nesta conclusão. Mas, como se trata de dificuldade recente, os leitores não devem confiar em demasia na sua própria sagacidade a ponto de concluir que um argumento realmente não existe porque escapa à investigação. Por esta razão, é preciso empreender pesquisa mais difícil, e, por enumeração de todos os ramos de conhecimento humano, tratar de mostrar que nenhum deles pode proporcionar semelhante argumento. Todos os raciocínios dividem-se em duas classes: raciocínios demonstrativos, que se referem às relações de ideias, e os raciocínios morais (ou prováveis) que se referem às questões de fato e de existência. Parece evidente que os últimos não englobam argumentos demonstrativos, pois não é contraditório o fato de que o curso da natureza pode modificar-se e que um objeto, aparentemente semelhante aos já observados, possa ser acompanhado de efeitos diferentes ou contrários. Não posso conceber clara e distintamente que um corpo que tomba das nuvens — semelhante em todos aspetos a o da neve — tenha, todavia, sabor de sal e queime como o fogo? Há proposição mais inteligível do que esta: todas as árvores florescerão em dezembro-janeiro e definharão em maio -junho? Portanto, considera-se inteligível toda proposição concebida distintamente e sem contradição e, por conseguinte, jamais sua falsidade é mostrada por argumento demonstrativo ou raciocínio abstrato a priori. Entretanto, se os argumentos nos levarem a confiar na experiência e fazê-la padrão de nosso juízo futuro, deveremos considerá-los apenas prováveis, isto é, referentes às questões de fato e de existência real, de acordo com a divisão acima mencionada. Mas, se nossa explicação desta classe de raciocínio é considerada sólida e satisfatória, verificaremos que de fato não existe tal tipo de argumento. Temos dito que todos os argumentos referentes à existência se fundam na relação de causa e efeito; que nosso conhecimento daquela relação provém inteiramente da experiência; e que todas as nossas conclusões experimentais decorrem da suposição que o futuro estará em conformidade com o passado. Portanto, tentar provar a última conjetura, por argumentos prováveis, por argumentos referentes à existência, consiste, certamente, em girar num círculo e dar por admitido o que precisamente se problematiza."


quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Texto para análise e resumo Inês Pessoa 11E

O Cogito
Mas há uma crença, uma proposição resistente, da qual ele não pode absolutamente duvidar. Mesmo que ele seja enganado pelos seus sentidos, que esteja perdido num sonho, que a sua origem seja tal que ele seja um pensador imperfeito, até que um demónio vicioso esteja determinado a lançar sobre ele a confusão, permanece acima de qualquer dúvida que ele existe. Como Descartes diz: ‘ Penso, existo, é necessariamente verdadeiro, de cada vez que eu o expresso ou concebo na minha mente.’ Temos não só um dos mais famosos slogans filosóficos jamais escritos, mas também a primeira verdade, o fundamento sobre o qual Descartes reconstrói o seu sistema de conhecimento. A primeira verdade é por vezes designada ‘o Cogito’, abreviatura da expressão latina ‘Cogito, ergo sum’, ‘Penso, logo existo’.
O estatuto do Cogito tem ocupado os filósofos desde então. Numerosas questões se levantam quase instantaneamente. Trata-se da conclusão de um argumento? Não é claro como possa ser isso, visto que Descartes admitiu não ter crenças, quaisquer premissas com que construir um argumento. Além do mais, ele disse também não ter fé na sua capacidade de construir argumentos, não ter confiança na Lógica. Alguns vêem no Cogito não a conclusão de um argumento, mas uma espécie de descoberta epistémica: uma verdade indubitável na qual ele tropeça. Outros preocupam-se em saber se Descartes pode ter direito ao ‘Eu’ presente no Cogito. Não terá ele de direito apenas a qualquer coisa de menos, a dizer somente que o pensamento ocorre e não que quem o pensa é o próprio Descartes?

O círculo cartesiano

No entanto, Descartes tenta ir para a frente, olhando para novas verdades dentro da sua mente. Pensa um pouco acerca da natureza da dúvida e conclui que a dúvida é uma forma de imperfeição, em comparação com o conhecimento. A reflexão sobre a própria ideia de perfeição condu-lo a uma das várias provas da existência de Deus. Dada a natureza das suas várias dúvidas, Descartes sabe que não é um ser perfeito. Não obstante, tem a ideia de perfeição e essa ideia não lhe pode ter vindo de si mesmo ou de qualquer ser imperfeito. Pode apenas vir de um ser perfeito, nomeadamente, de Deus. Esta linha de pensamento conduz a uma versão do argumento ontológico de Anselmo. A ideia que Descartes tem de Deus é a de um ser com todas as perfeições. A existência é uma forma de perfeição; portanto, Deus tem de existir. Pensar em Deus como não existindo é como pensar num triângulo sem três lados. Assim como possuir três lados está no conceito de triangularidade, existência está no conceito de Deus. Se compreendemos bem a ideia de Deus, temos de aceitar que Deus existe.
O engano, nota Descartes, é uma forma de imperfeição e, por isso, conclui que Deus não pode ser enganador. Logo, podemos confiar nas nossas percepções claras e distintas; não somos sistematicamente enganados e a verdade tem de estar ao alcance das nossas capacidades. Reconstruir um sistema de crenças enraízado na percepção clara e distinta é a tarefa [seguinte].
Muitos notaram nesta linha de argumento um círculo demasiado fechado. Chegamos ao conhecimento de que Deus existe e não é enganador apenas porque aceitámos uma série de percepções claras e distintas. Sabemos que as nossas percepções claras e distintas são fiáveis porque Deus existe e não é enganador. Mas não depende a nossa fé nas percepções claras e distintas da prova de que Deus existe e não pressupõe essa prova a veracidade das nossas percepções claras e distintas?
O problema (…) é o de que o conhecimento parece ser uma coisa frágil. Descartes tem certamente sucesso na parte negativa do seu projecto, arrasando os fundamentos do conhecimento com os argumentos cépticos (…). No entanto, o seu esforço para erguer tudo a partir do nada constitui uma espécie de falhanço. Mas o seu objectivo principal, o de mostrar que uma compreensão científica do mundo é possível é algo que nós, modernos, tomamos como adquirido demasiado facilmente.

James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy Books. London & New York: Continuum, 2006.
Trad. Carlos Marques.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

domingo, 20 de novembro de 2022

Texto para resumo/análise Kayke 11E , Calebeth


Descartes'  ideia de visão, 1692.
Descartes' (1596-1650) idea of vision, [1692]. The passage of nervous impulses from the eye to the pineal gland and so to the muscles. From Rene Descartes' Opera Philosophica (Tractatus de homine), 1692. (Photo by Oxford Science Archive/Print Collector/Getty Images)

O PROBLEMA DE DESCARTES

Poucas pessoas supuseram que as mesas ou os átomos têm pensamentos. Mas porque é que Descartes pensou que as mentes não existem no espaço? Afinal, podes pensar que a minha mente está onde está o meu corpo. Mas se eu não tivesse corpo, tal como Descartes pensava que era possível, ainda assim eu teria uma mente. Por isso ele não podia dizer que uma mente tem que estar onde o seu corpo está, simplesmente porque se pode não ter um corpo. Além disso, se eu tenho um corpo, porque é que eu não deveria dizer que é aí que a minha mente está? Se eu não tivesse um corpo, essa seria a resposta errada, mas na verdade eu tenho um corpo. Eu penso que a principal razão para pensar que as mentes não existem no espaço é o facto de parecer estranho perguntar “Onde é que estão os teus pensamentos?”. Mesmo que respondesses dizendo “Eles estão na minha cabeça”, não seria óbvio que isto era literalmente verdadeiro. Porque se eles estivessem na tua cabeça, poderias saber exatamente em que lugar da cabeça estariam e a quantidade de volume que ocupariam. Mas não se pode dizer quantos centímetros de comprimento ou largura ocupa um pensamento, nem se estão situados a norte ou a sul do córtex cerebral. […]
É precisamente este dualismo que faz surgir um conjunto de dificuldades à posição de Descartes. Isto porque quem pensa que mente e corpo são totalmente distintos tem que responder a duas questões principais. A primeira, como é que eventos mentais causam eventos físicos? Como é que, por exemplo, as nossas intenções, que são mentais, levam à ação, que envolve movimentos físicos do nosso corpo? Como é que, por exemplo, é possível que a interação física entre os nossos olhos e a luz leve às experiências sensoriais da visão, que são mentais? […]
A resposta de Descartes a estas questões parece clara e suficientemente simples. O cérebro humano, pensava ele, possui um ponto de interação entre a mente e a matéria. De facto, Descartes sugeriu a glândula pineal, situada no centro da cabeça, como sendo o canal entre os dois domínios distintos da mente e da matéria. Era esta a resposta dele para o problema mente-corpo. No entanto esta teoria entra em conflito com a afirmação de Descartes de que o que distingue o mental do material é o facto do mental não ser espacial. Pois se acontecimentos mentais causam acontecimentos cerebrais, então isso não significa que eventos mentais ocorrem no cérebro? Como é que algo pode causar um acontecimento no cérebro sem ser um acontecimento (ou algo do mesmo género) no cérebro? Normalmente, quando um evento – digamos “A” – causa outro evento – digamos “B” – A e B têm de estar próximos um do outro, ou tem que existir uma sequência de eventos próximos uns dos outros entre A e B. Uma drama num estúdio de televisão causa uma imagem no meu televisor a muitos quilómetros de distância. Mas há um campo eletromagnético que transporta a imagem do estúdio até mim, um campo que existe entre o meu televisor e o estúdio. 
A perspetiva de Descartes terá de ser a de que os meus pensamentos causam mudanças no meu cérebro e que estas mudanças depois levam à minha ação. Mas se os pensamentos não existem ou não estão próximos do meu cérebro, e se não existe uma cadeia de eventos entre os meus pensamentos e o meu cérebro, então isto é um tipo de causalidade muito invulgar. Descartes quer dizer que os pensamentos não estão em nenhum lugar. Mas, de acordo com o que ele defende, pelo menos alguns dos efeitos dos meus pensamentos estão no meu cérebro e nenhum dos efeitos diretos dos meus pensamentos estão no cérebro de outras pessoas. Normalmente os meus pensamentos levam às minhas ações e nunca levam diretamente às ações de outras pessoas. Chegamos, assim, a um problema central da posição de Descartes, já que é normal pensar que as coisas estão onde os seus efeitos se originam. (Podemos designar esta ideia como a tese causal da localização). Deste ponto de vista, os meus pensamentos estão no meu cérebro, que é a origem do meu comportamento. Mas se os eventos mentais ocorrem no cérebro, então, dado que o cérebro está no espaço, pelo menos alguns eventos mentais também existem no espaço. Assim, o modo como Descartes distingue o mental do físico não funciona. Designemos esta aparente conflito entre o facto de que a mente e a matéria parecem interagir causalmente e a afirmação de Descartes que a mente não existe no espaço o problema de Descartes.”


Kwame Anthony Appiah,Thinking it Through: An introduction to contemporary philosophy, Oxford University Press

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Texto para resumo Carolina 11E




Apesar de ter uma certeza, uma crença básica que a dúvida confirma como verdadeira, Descartes não pode ter mais nenhuma certeza, pois duvidou da existência do mundo, do que vê, até de ter um corpo. Todavia tem a crença que Deus é garantia da verdade desse mundo mas como prová-lo racionalmente?

Descartes conclui que Deus existe pelo facto da sua ideia existir em nós. Uma das passagens onde ele exprime melhor esta ideia é:

“Assim, dado que temos em nós a ideia de Deus ou do ser supremo, com razão podemos examinar a causa por que a temos; e encontraremos nela tanta imensidade que por isso nos certificamos absolutamente de que ela só pode ter sido posta em nós por um ser em que exista efectivamente a plenitude de todas as perfeições, ou seja, por um Deus realmente existente. Com efeito, pela luz natural é evidente não só que do nada nada se faz, mas também que não se produz o que é mais perfeito pelo que é menos perfeito, como causa eficiente e total; e, ainda, que não pode haver em nós a ideia ou imagem de alguma coisa da qual não exista algures, seja em nós, seja fora de nós, algum arquétipo que contenha a coisa e todas as suas perfeições. E porque de modo nenhum encontramos em nós aquelas supremas perfeições cuja ideia possuímos, disso concluímos correctamente que elas existem, ou certamente existiram alguma vez, em algum ser diferente de nós, a saber, em Deus; do que se segue com total evidência que elas ainda existem.”

Descartes, Princípios da Filosofia, I Parte, p. 64.


terça-feira, 25 de outubro de 2022

Texto para resumo Bianca 11E

 


“Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei; pois são tão metafísicas e tão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que se possa julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de Geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava. Depois, examinado com atenção o que eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se mui evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de crer que eu tivesse existido; compreendi por aí que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.”

Descartes, Discurso do Método, IV Parte

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Texto para resumo Leonor Freitas 11E

 


Os argumentos dos céticos

"O ceticismo, na sua versão mais extrema, é a ideia de que o conhecimento não é possível. Os céticos podem apresentar o seguinte argumento a favor da sua posição:

Se S sabe que P, então não é possível que S esteja enganado acerca de P.
É possível que S esteja enganado acerca de P.
Portanto, S não sabe que P.

Este argumento é um modus tollens e tem, por isso, forma válida. Se as premissas forem verdadeiras, o argumento é sólido e a conclusão verdadeira. A primeira premissa é meramente a expressão da condição que uma proposição tem de estar justificada de modo a garantir a sua verdade para que possa ser conhecimento. Admitamos, por isso, que é verdadeira. E a segunda? Como prova o cético esta premissa? É possível defendê-la apelando, por exemplo, aos erros e ilusões dos sentidos ou às limitações da memória e da razão. Mas também é possível defendê-la com um argumento mais geral que vise mostrar que nunca podemos justificar as nossas crenças e, portanto, que é sempre possível que estejamos enganados acerca delas.

Para vermos como, pensemos numa qualquer afirmação de cuja verdade julguemos estar absolutamente certos, como, por exemplo, que “A Lua é o único satélite natural da Terra”, ou que “Portugal situa-se na Europa”. A questão crucial é esta: que justificação temos para estarmos certos da sua verdade? Temos de ter uma justificação, claro. Caso contrário essas crenças não constituem conhecimento. Podemos justificar as nossas crenças dizendo, por exemplo, que as aprendemos na escola com os nossos professores de Geografia ou de Ciências da Natureza, que, dada a sua formação, são especialistas no assunto. O que fizemos, deste modo, foi justificar uma crença com outra crença. Mas isto, como é óbvio, levanta uma outra questão: que justificação temos para esta nova crença? Esta crença está, afinal de contas, numa posição similar à primeira. Se essa precisa de uma justificação, porque sem ela não constitui conhecimento, o mesmo se passa com esta. E, evidentemente, se esta não constitui conhecimento, também não pode justificar a primeira. Uma forma de justificar esta segunda crença é, claro, recorrer a uma outra da qual ela possa derivar. É fácil ver, no entanto, que o mesmo problema se colocará em relação a essa nova crença. Também ela precisará de uma justificação. Cada afirmação precisa de uma justificação e a justificação de uma nova justificação, numa regressão sem fim. Desse modo, parece, nem a primeira nem qualquer das outras crenças está justificada.

Há alguma forma de evitar esta consequência? Uma possibilidade é parar numa dada crença e não recuar mais na cadeia das justificações, deixando essa crença sem qualquer justificação. A outra é recuar nas nossas justificações até, eventualmente, voltarmos a uma crença que já usámos como justificação, raciocinando em círculo. Por que razão devemos acreditar no professor de Geografia ou de Ciências da Natureza? Porque o que ele diz está de acordo com o manual da disciplina. E por que devemos acreditar nesse manual? Porque foi escrito por especialistas. E como sabemos que são especialistas? Porque se não o fossem, não escreveriam manuais.

Estas três possibilidades em conjunto constituem o chamado trilema de Agripa, do nome do cético grego do século I a quem a tradição atribui a sua formulação. De acordo com este trilema, quando pretendemos justificar uma crença por intermédio de outras crenças estão disponíveis apenas três alternativas:

  1. Remontar infinitamente na cadeia de justificações;
  2. Raciocinar em círculo;
  3. Parar numa crença não suportada.

Nenhuma destas três possibilidades, afirmam os céticos, é melhor que a outra. Parar arbitrariamente na cadeia de justificações e raciocinar em círculo não é uma forma mais apropriada de justificar as nossas crenças do que regredir ao infinito. E como não existe outra alternativa, eles concluem que não é possível justificar nenhuma das nossas crenças e que, portanto, o conhecimento não existe."

Álvaro Nunes, texto retirado de https://criticanarede.com/anunesoproblemadoceticismo.html