quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Texto resumo análise Viviana 11B

 


Críticas à Filosofia Cartesiana

O círculo cartesiano

O cogito, só por si, dificilmente poderia constituir um fundamento sólido para o conhecimento. De facto, é a existência de Deus que garante a Descartes que não se engana quando pensa clara e distintamente. Mas, por outro lado, parece que Descartes só pode saber que Deus existe porque compreende clara e distintamente a Sua existência, a existência de um ser perfeito.

Se este é o argumento de Descartes, como pensam alguns críticos, então é falacioso, pois trata-se de um argumento circular: para saber que as ideias claras e distintas são verdadeiras, tenho primeiro de saber que Deus existe; mas, para saber que Deus existe, tenho primeiro de saber que as ideias claras e distintas são verdadeiras.

Será que da ideia da perfeição se segue que existe um ser perfeito?

A segunda crítica que referiremos aqui questiona a validade da demonstração cartesiana da existência de Deus a partir da ideia de causalidade.

Vimos anteriormente Descartes argumentar que a ideia de perfeição só pode ter sido causada por um ser perfeito; mas, para alguns críticos, esta ideia está longe de ser clara e distinta. Quem nos garante que não é ainda o génio maligno a manipular a nossa mente, e a enganar-nos quando pensamos que a ideia de perfeição só pode ter sido causada por um ser perfeito? Na verdade, Descartes ainda não afastou completamente a hipótese do génio maligno.

E, afinal, que razões temos para acreditar que a ideia de perfeição tem de ser causada por um ser perfeito? Teremos sequer razões para acreditar que tal ideia tem de ser causada? Posso ter a ideia de uma pessoa perfeitamente pontual, por exemplo. Será que esta ideia exige uma causa perfeitamente pontual? Isto não parece fazer sentido. Talvez a ideia de uma pessoa perfeitamente pontual acabe por ser a definição de uma pessoa perfeitamente pontual. Mas a definição de uma pessoa perfeitamente pontual é uma ideia que posso ter sem jamais ter encontrado tal pessoa, ou mesmo que tal pessoa não exista (ver Simon Blackburn, Pense: Uma Introdução à Filosofia, Lisboa, Gradiva, 2001, p. 43).

Parece, pois, que Descartes não conseguiu demonstrar satisfatoriamente a existência de Deus; e, se não conseguiu demonstrar satisfatoriamente a existência de Deus, então o cogito não é garantia suficiente de um conhecimento à prova de erro. Por isso, alguns filósofos pensam que Descartes não conseguiu resolver satisfatoriamente o problema e que, se queremos refutar definitivamente o céptico, teremos de encontrar outros fundamentos para o conhecimento.

É desse modo que pensam os fundacionalistas clássicos como Locke, Berkeley e Hume.

Artur Polónio

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Resumo análise de texto: Leonor Freitas 11A e João Secundo 11B


De acordo com Descartes, a primeira coisa que se sabe [sabendo-se que a base do conhecimento não pode ser a experiência dos sentidos] é, pelo menos, que você existe. Como? Bem, é que mesmo que esteja neste momento a sonhar, que seja um cérebro numa cuba ou a vítima de um espírito maligno enganador, você tem, antes de mais, de existir para poder estar a sonhar ou ser enganado. Com efeito, para estar preocupado com a questão de saber se está ou não está a sonhar, para estar preocupado com a questão de saber se existe tal demónio ou mesmo se você realmente existe, você tem de existir para poder ter tais preocupações. Se não existisse de todo, não se poderia obviamente preocupar com esse facto. Assim, só o facto de pensar sobre a sua existência é suficiente para provar que existe. “Cogito, ergo sum”, como diz Descartes – “Penso, logo existo.” Este argumento famoso, de que se pode ter conhecimento sem termos de nos apoiar na fiabilidade dos sentidos é, na perspetiva de Descartes, o ponto de partida de todo o conhecimento e o que faz parar em absoluto toda a dúvida: você pode não saber outra coisa, mas pode ao menos saber de certeza que é real.

Até aqui tudo bem. Mas há algo mais que seja real? Em particular, é real o universo físico que você sempre acreditou existir fora da sua mente – o mundo habitual, das mesas, cadeiras, pedras, árvores, dos outros seres humanos, cães, gatos e outros animais, planetas, estrelas e galáxias – é tudo isso real? Dá a sensação de que se todas as experiências percetivas podem ser falsas, então não há, nem pode haver, forma de saber se algo mais existe. Talvez nada mais exista de facto – nem sequer um espírito malévolo ou cientistas loucos. Talvez você seja a única realidade, constituindo as suas experiências percetivas nada mais do que uma alucinação que dura indefinidamente e o universo inteiro um produto da sua imaginação. Isto é o solipsismo: a perspetiva segundo a qual “apenas eu existo”.

 

Edward Feser, Philosophy of mind. A beginner’s guide. (Oxford, 2006). Trad. Carlos Marques.

 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Texto para análise resumo Joana S. 11A e Jean 11B


A REVIRAVOLTA CARTESIANA

No Discurso do Método, [Descartes] conta-nos como na sua juventude se sentia perturbado com o espectro da incerteza:

[…] encontrava-me embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não ter tido outro proveito, ao tentar instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. E, no entanto, estive numa das escolas mais célebres da Europa…
E, enfim, o nosso século parecia-me tão florescente e fértil de bons espíritos quanto qualquer um dos precedentes. Por isso, tomei a liberdade de tomar o meu juízo como universal, concluindo que não há nenhuma doutrina no mundo que fosse como até então me fizeram crer.

A resposta de Descartes a esta situação foi procurar os fundamentos sobre os quais a verdade podia ser assegurada. Por isso, nas suas Meditações Sobre Filosofia Primeira, ele faz uso de um método de dúvida radical, cujo fim é o de estabelecer pelo menos alguma crença que possa então servir como alicerce para o conhecimento. A dúvida radical significa apenas isso. Como diz Descartes, 'A mais pequena dúvida será suficiente para me fazer rejeitar qualquer das minhas crenças.'
O argumento de Descartes é um dos mais famosos na história da filosofia. Ele mostra que nos podemos enganar acerca de certos dados dos sentidos; que é possível colocar toda a nossa experiência dos sentidos sob dúvida - podemos, por exemplo, estar a sonhar sem o saber; e, de modo mais radical, que é possível que nada exista para além das nossas experiências sensíveis - podemos ter sido iludidos por um demónio maligno.
Contudo, este processo também mostra que há uma crença renitente. Por mais que apliquemos o método da dúvida, não é possível duvidar de que existimos. O próprio facto de se duvidar significa que tem de haver um 'Eu' que está a duvidar. É isto o famoso cogito de Descartes:

Mas persuadi-me de que não havia nada no mundo, nenhum céu, nenhuma terra, nenhuns espíritos, nenhuns corpos. E não me persuadi também de que eu próprio não existia? Pelo contrário, se me persuadi de alguma coisa, eu existia com certeza. […] De maneira que, depois de ter-se pesado e repesado muito bem tudo isto, deve por último concluir-se que esta proposição Eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira sempre que proferida por mim ou concebida pelo espírito.

Descartes, porém, tem agora um problema. Tendo estabelecido a existência de uma entidade pensante (se realmente foi estabelecida), como recupera o resto do mundo? A resposta, de modo breve, é que não é capaz de o fazer; pelo menos, de modo a satisfazer um filósofo dos nossos tempos. A sua tentativa envolve o emprego de uma versão do argumento ontológico com o objectivo de provar a existência de Deus, argumentando depois que, como Deus não é enganador, não somos sistematicamente enganados sobre as coisas que percebemos claramente. É razoável assim retomar algumas das nossas crenças acerca do mundo exterior.

Ophelia Benson & Jeremy Stangroom, Why Truth Matters (London, 2006, pps. 26-27). Tradução Carlos Marques.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

René Descartes O Discurso do método, 1637 - Para ler

 

DISCURSO DO MÉTODO PARA BEM CONDUZIR A PRÓPRIA RAZÃO E PROCURAR A VERDADE NAS CIÊNCIAS|

Advertência

Se este discurso parecer demasiado longo para ser lido de uma só vez, poder-se-á dividi-lo em seis partes. E, na primeira, encontrar-se-ão diversas considerações sobre as ciências. Na segunda, as principais regras do método que o Autor buscou. Na terceira, algumas das regras da Moral que tirou desse método. Na quarta, as razões pelas quais prova a existência de Deus e da alma humana, que são os fundamentos de sua metafísica. Na quinta, a ordem das questões de Física que investigou, e, particularmente, a explicação do movimento do coração e algumas outras dificuldades que concernem à Medicina, e depois também a diferença que há entre nossa alma e a dos animais. E, na última, que coisas crê necessárias para ir mais adiante do que foi na pesquisa da natureza e que razões o levaram a escrever.

 

|PRIMEIRA PARTE

 O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o que têm. E não é verosímil que todos se enganem a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, que a diversidade das nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos os nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam.

Quanto a mim, jamais presumi que meu espírito fosse em nada mais perfeito do que o do comum; amiúde desejei mesmo ter o pensamento tão rápido, ou a imaginação tão nítida e distinta, ou a memória tão ampla ou tão presente, quanto alguns outros. E não sei de quaisquer outras qualidades, exceto as que servem à perfeição do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso, posto que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero crer que existe inteiramente em cada um, e seguir nisso a opinião comum dos filósofos, que dizem não haver mais nem menos senão entre os acidentes, e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie.

Mas não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver encontrado, desde a juventude, em certos caminhos, que me conduziram a considerações e máximas, de que formei um método, pelo qual me parece ter um meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, e de erguê-lo, pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a mediocridade de meu espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir.

Pois já colhi dele tais frutos que, embora no juízo que faço de mim próprio eu procure pender mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, mirando com um olhar de filósofo as diversas ações e empreendimentos de todos os homens, não haja quase nenhum que não me pareça vão e inútil, não deixo de obter extrema |satisfação do progresso que penso já ter feito na busca da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente homens, há alguma que seja solidamente boa e importante, ouso crer que é aquela que escolhi. [4] Todavia, pode acontecer que me engane, e talvez não passe de um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos equivocar-nos no que nos toca, e como também nos devem ser suspeitos os juízos dos nossos amigos, quando são a nosso favor. Mas estimaria muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a minha vida como num quadro, para que cada qual possa julgá-la e que, informado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela, seja este um novo meio de me instruir, que juntarei àqueles que costumo utilizar.

Assim, o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha. Os que se metem a dar preceitos devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem os dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis. Mas, não propondo este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, se encontrarão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos me serão gratos por minha franqueza.

 

Fui nutrido nas letras desde a infância, e por me haver persuadido de que, por meio delas, se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las. Mas, logo que terminei esse curso de estudos, ao cabo do qual se costuma ser recebido na classe dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não haver obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. E, no entanto, estivera numa das mais célebres escolas da Europa, onde pensava que deviam existir homens sapientes, se é que existiam em algum lugar da Terra. Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam, e mesmo, não me tendo contentado com ciências que nos ensinavam, percorrera todos os livros que tratam daquelas que são consideradas as mais curiosas e as mais raras, que vieram a cair em minhas mãos. Além disso, eu conhecia os juízos que os outros faziam de mim; e não via de modo algum que me julgassem inferior aos meus condiscípulos, embora entre eles houvesse alguns já destinados a preencher os lugares dos nossos mestres. E, enfim, o nosso século parecia-me tão florescente e tão fértil em bons espíritos como qualquer dos precedentes. O que me levava a tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que não existia doutrina no mundo que fosse tal como dantes me haviam feito esperar.

Não deixava, todavia, de estimar os exercícios com os quais se ocupam nas escolas. Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias ao entendimento dos livros antigos; que a gentileza das fábulas desperta o espírito; que as realizações memoráveis das histórias o elevam, e que, sendo lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na q

ual eles nos revelam tão-somente o melhor dos seus pensamentos; que a eloquência tem forças e belezas incomparáveis; que a poesia tem delicadezas e ternuras muito encantadoras; que as Matemáticas têm invenções bastante sutis, e que podem servir muito, tanto para contentar os curiosos, quanto para facilitar todas as artes e diminuir o trabalho dos homens; que os escritos que tratam dos costumes contêm muitos ensinamentos e muitas exortações à virtude que são muito úteis; que a Teologia ensina a ganhar o céu; que a Filosofia dá meio de falar com verosimilhança de todas as coisas e de se fazer admirar pelos menos eruditos; que a Jurisprudência, a Medicina e as outras ciências trazem honras e riquezas àqueles que as cultivam; e, enfim, que é bom tê-las examinado a todas, até mesmo as mais supersticiosas e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o justo valor e evitar ser por elas enganado.

Mas eu acreditava já ter dedicado bastante tempo às línguas, e mesmo também à leitura dos livros antigos, às suas histórias e às suas fábulas. Pois quase o mesmo que conversar com os de outros séculos, é o viajar. É bom saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais justamente e não pensemos que tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão, como soem proceder os que nada viram. Mas, quando empregamos demasiado tempo em viajar, acabamos tornando-nos estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos demasiado curiosos das coisas que se praticavam nos séculos passados, ficamos ordinariamente muito ignorantes das que se praticam no presente. Além do mais, as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos eventos que não o são, e mesmo as histórias mais fiéis, se não mudam nem alteram o valor das coisas para torná-las mais dignas de serem lidas, ao menos omitem quase sempre as circunstâncias mais baixas e menos ilustres, de onde resulta que o resto não parece tal qual é, e que aqueles que regulam os seus costumes pelos exemplos que deles tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos paladinos de nossos romances e a conceber desígnios que ultrapassam suas forças.

 Eu apreciava muito a eloquência e estava enamorado da poesia; mas pensava que uma e outra fossem dons do espírito, mais do que frutos do estudo. Aqueles cujo raciocínio é mais vigoroso e que melhor digerem os seus pensamentos, a fim de torná-los claros e inteligíveis, podem sempre persuadir melhor os outros daquilo que propõem, ainda que falem apenas baixo bretão e nunca tenham aprendido retórica. E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem exprimir com o máximo de ornamento e doçura não deixariam de ser os melhores poetas, ainda que a arte poética lhes fosse desconhecida.

Comprazia-me sobretudo com as Matemáticas, por causa da certeza e da evidência das suas razões; mas não notava ainda seu verdadeiro emprego, e, pensando que serviam apenas às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo os seus fundamentos tão firmes e tão sólidos, não se tivesse edificado sobre eles nada de mais elevado. Tal como, ao contrário, eu comparava os escritos dos antigos pagãos que tratam de costumes a palácios muito soberbos e magníficos, erigidos apenas sobre a areia e a lama. Erguem muito alto as virtudes e apresentam-nas como as mais estimáveis entre todas as coisas que existem no mundo; mas não ensinam bastante a conhecê-las, e amiúde o que chamam com um nome tão belo não é senão uma insensibilidade, ou um orgulho, ou um desespero, ou um parricídio. Eu reverenciava a nossa Teologia e pretendia, como qualquer outro, ganhar o céu; mas, tendo aprendido, como coisa muito segura, que o seu caminho não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão acima de nossa inteligência, não me ousaria submetê-las à fraqueza dos meus raciocínios, e pensava que, para empreender o seu exame e lograr êxito, era necessário ter alguma extraordinária assistência do céu e ser mais do que homem. Da filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se dispute, e por conseguinte que não seja duvidosa, eu não alimentava qualquer presunção de acertar melhor do que outros; e que, considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens doutos, pode haver sobre uma e mesma matéria, sem que jamais possa existir mais de uma que seja verdadeira, reputava quase como falso tudo quanto era somente verosímil.

 Depois, quanto às outras ciências, na medida em que tomam seus princípios da Filosofia, julgava que nada de sólido se podia construir sobre fundamentos tão pouco firmes. E nem a honra, nem o ganho que elas prometem, eram suficientes para me incitar a aprendê-las; pois não me sentia, de modo algum, graças a Deus, numa condição que me obrigasse a converter a ciência num mister, para o alívio da  minha fortuna; e conquanto não fizesse profissão de desprezar a glória como um cínico, fazia, entretanto, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar adquirir com falsos títulos. E enfim, quanto às más doutrinas, pensava já conhecer bastante o que valiam, para não mais estar exposto a ser enganado, nem pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelos artifícios ou jactâncias de qualquer dos que fazem profissão de saber mais do que sabem.

Eis por que, tão logo a idade me permitiu sair da sujeição de meus preceptores, deixei inteiramente o estudo das letras. E, resolvendo-me a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia achar em mim próprio, ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha mocidade em viajar, em ver cortes e exércitos, em frequentar gente de diversos humores e condições, em recolher diversas experiências, em provar a mim mesmo nos reencontros que a fortuna me propunha e, por toda parte, em fazer tal reflexão sobre as coisas que se me apresentavam, que eu pudesse delas tirar algum proveito. Pois afigurava-se-me poder encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada qual efetua no que respeitante aos negócios que lhe importam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve puni-lo logo em seguida, do que naqueles que um homem de letras faz no seu gabinete, sobre especulações que não produzem efeito algum e que não lhe trazem outra consequência senão talvez a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto mais distanciadas do senso comum, por causa do espírito e artifício que precisou empregar no esforço de torná-las verosímeis.

 E eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida. [15] É certo que, enquanto me limitava a considerar os costumes dos outros homens, pouco encontrava que me satisfizesse, pois advertia neles quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos. De modo que o maior proveito que daí tirei foi que, vendo uma porção de coisas que, embora nos pareçam muito extravagantes e ridículas, não deixam de ser comumente acolhidas e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não crer demasiado firmemente em nada do que me fora inculcado só pelo exemplo e pelo costume; e, assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão.

 Mas, depois que empreguei alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a resolução de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que devia seguir. O que me deu muito mais resultado, parece-me, do que se jamais tivesse me afastado de meu país e dos meus livros.

 

 

 

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Texto resumo/análise Diogo Almeida 11B

Retire um livro retangular da sua estante e olhe para a capa. Qual é a cor predominante, e quantos lados tem? Ao responder a estas questões, o leitor fica a saber duas coisas acerca deste livro, e esses dois factos mostram uma importante distinção entre duas maneiras que temos de adquirir conhecimento. Para ficarmos a saber a cor do livro temos que observá-lo (ou pedir a alguém que o faça por nós). A justificação para a sua crença acerca da sua cor é fornecida pela experiência (nossa ou de outrem). Mas não precisamos de olhar para um livro retangular para sabermos quantos lados tem. Sabemos que os retângulos têm quatro lados pelo simples facto de pensarmos o que é um retângulo. Adquirimos este conhecimento usando apenas os nossas poderes de raciocínio; não temos de considerar a informação dada pelos nossos sentidos. O conhecimento que é justificado pela experiência é denominado conhecimento a posteriori ou conhecimento empírico. O conhecimento em que a experiência não tem um papel justificatório é denominado conhecimento a priori. Dan O'Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento

domingo, 3 de outubro de 2021

Texto para resumo Daniel Preto 11A

 

Henry está a ver televisão numa tarde de Junho. Assiste à final masculina de Wimbledon e, na televisão, McEnroe vence Connors; o resultado é de dois a zero e «match point» para McEnroe no terceiro «set». McEnroe ganha o ponto. Henry crê justificadamente que
1 acabei de ver McEnroe ganhar a final de Wimbledon deste ano, e infere sensatamente que
2 McEnroe é o campeão de Wimbledon deste ano.
No entanto, as câmaras que estavam em Wimbledon deixaram na realidade de funcionar, e a televisão está a passar uma gravação da competição do ano passado. Mas enquanto isto acontece, McEnroe está prestes de repetir a retumbante vitória do ano passado. Portanto a crença 2 de Henry é verdadeira, ele tem decerto justificação para nela crer. Contudo, dificilmente aceitaríamos que Henry conhece 2.
Este tipo de exemplo contrário à descrição tripartida do conhecimento é conhecido como exemplo contrário de Gettier, segundo E. L. Gettier (1963). (Devo este exemplo específico a Brian Garrett.) Gettier argumentava que eles mostram que a descrição tripartida é insuficiente; é possível que alguém não conheça, mesmo que as três condições sejam realizadas.
Gettier não põe aqui em causa nenhuma das três condições. Aceita que elas são individualmente necessárias, e apenas argumenta que precisam de ser complementadas. (...)
O exemplo contrário de Gettier é por conseguinte um exemplo em que "a" tem uma crença justificada mas falsa por inferência a partir da qual ele justificavelmente crê que algo que acontece é verdadeiro, e chega deste modo a uma crença verdadeira justificada que não é conhecimento.
Que resposta poderá ser dada a estes infames mas ligeiramente irritantes exemplos contrários? Parece haver três vias possíveis:
1 encontrar algum meio de demonstrar que os exemplos contrários não funcionam;
2 aceitar os exemplos contrários e tentar encontrar um complemento à análise tripartida que os exclui;
3 aceitar os exemplos contrários e alterar a análise tripartida para os incluir em vez de lhe acrescentar o que quer que seja.
O restante prende-se com a primeira via.
Em que princípios de inferência se baseiam estes exemplos contrários? O próprio Gettier apresenta dois. Para que os exemplos funcionem, deve ser possível que uma crença falsa continue a ser justificada; e uma crença justificada deve justificar qualquer crença que ela implique (ou que se creia justificadamente que implique). Este último é precisamente o princípio da oclusão POj acima mencionado na discussão do cepticismo (1.2). Portanto, se pudéssemos mostrar que POj é falso, isto teria o duplo efeito de destruir os exemplos contrários de Gettier bem como (pelo menos em parte) o primeiro argumento céptico. Poderia ser, contudo, possível construir novas variantes do tema Gettier que não se baseiam na inferência ou numa inferência deste tipo, como veremos a seguir, e sendo assim não há queixas acerca do PO% ou de outros princípios que venham a ser muito eficientes.
Uma coisa que não podemos fazer é rejeitar os exemplos contrários de Gettier como forjados e artificiais. São perfeitamente eficientes nos seus próprios termos. Mas poderíamos sensatamente perguntar de que serve cansar o cérebro a descobrir uma definição aceitável de «a sabe que p». Será isto mais do que um mero exercício técnico? O que nos desconcertaria no facto de não conseguirmos elaborar uma definição à prova de problemas? Muitas das inúmeras dissertações escritas em resposta a Gettier dão a impressão de que responder a Gettier é uma espécie de jogo filosófico privado, que não tem qualquer interesse a não ser para os jogadores. E não nos demonstrou afinal Wittgenstein que um conceito pode ser perfeitamente legítimo sem ser definível, argumentando que não é indispensável que exista qualquer elemento comum a todos os casos de uma propriedade (p. ex. casos de conhecimento) para além do facto de serem casos (p. ex. de que são conhecimento)? (Cf. Wittgenstein, 1969b, pp. 17-18, e 1953, §§ 66-7.) Então o que é que poderia afinal depender do nosso êxito ou malogro para descobrir condições necessárias e suficientes para o conhecimento?


Jonathan Dancy (1990), Epistemologia Contemporânea, Ed.70, Lx