quarta-feira, 23 de março de 2011

Teoria do conhecimento: O apriorismo de Kant

Immanuel Kant (1724-1804)




A possibilidade de um conhecimento necessário e universal: Os juízos sintéticos ‘a priori’.



Os juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais, são "a priori", isto é independentes dos azares da experiência, sempre particular e contingente. À primeira vista, parece evidente que esses juízos "a priori" são juízos analíticos. Juízo analítico é aquele cujo predicado está contido no sujeito. Um triângulo é uma figura de três ângulos: basta-me analisar a própria definição desse termo para dizê-lo. Em compensação, os juízos sintéticos, aqueles cujo atributo enriquece o sujeito (por exemplo: esta régua é verde), são naturalmente "a posteriori"; só sei que a régua é verde porque a vi. Eis um conhecimento sintético "a posteriori" que nada tem de necessário (pois sei que a régua poderia não ser verde) nem de universal (pois todas as réguas não são verdes).

Entretanto, também existem (este enigma é o ponto de partida de Kant) juízos que são, ao mesmo tempo, sintéticos e "a priori"! Por exemplo:a soma dos ângulos de um triângulo equivale a dois rectos. Eis um juízo sintético (o valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à ideia de triângulo) que, no entanto, é "a priori". De facto eu não tenho necessidade de uma constatação experimental para conhecer essa propriedade. Tomo conhecimento dela sem ter necessidade de medir os ângulos com um transferidor. Faço-o por intermédio de uma demonstração rigorosa. Também em física, eu digo que o aquecimento da água é a causa necessária da sua ebulição (se não houvesse aí senão uma constatação empírica, como acreditou Hume, toda ciência, enquanto verdade necessária e universal, estaria anulada). Como se explica que tais juízos sintéticos e "a priori" sejam possíveis?

Eu demonstro o valor da soma dos ângulos do triângulo fazendo uma construção no espaço. Mas por que a demonstração se opera tão bem na minha folha de papel quanto no quadro negro... ou quanto no solo em que Sócrates traçava figuras geométricas para um escravo? É porque o espaço, assim como o tempo, é um quadro que faz parte da própria estrutura de meu espírito. O espaço e o tempo são quadros "a priori", necessários e universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira parte da Crítica da Razão Pura, denominada Estética transcendental. Estética significa teoria da percepção, enquanto transcendental significa "a priori", isto é, simultaneamente anterior à experiência e condição da experiência). O espaço e o tempo não são, para mim, aquisições da experiência. São quadros "a priori" de meu espírito, nos quais a experiência vem depositar-se. Eis por que as construções espaciais do geómetra, por mais sintéticas que sejam, são "a priori", necessárias e universais. Mas o caso da física é mais complexo. Aqui, eu falo não só do quadro "a priori" da experiência, mas, ainda, dos próprios fenómenos que nela ocorrem. Para dizer que o calor faz ferver a água, é preciso que eu constate. Como, então, os juízos do físico podem ser "a priori", necessários e universais?

É porque, responde Kant, as regras, as categorias, pelas quais unificamos os fenómenos esparsos na experiência, são exigências "a priori" do nosso espírito. Os fenómenos, eles próprios, são dados "a posteriori", mas o espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de unificação dos fenómenos entre si, uma exigência de explicação por meio de causas e efeitos. Essas categorias são necessárias e universais. O próprio Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença na causalidade, não emprega necessariamente a categoria "a priori" de causa na crítica que nos oferece? "Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias como às únicas condições sob as quais a diversidade da intuição pode unificar-se numa consciência". Assim sendo, a experiência fornece-nos a matéria do nosso conhecimento, mas é nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência no seu quadro espácio-temporal (Aquilo a que denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera mole, receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas estruturas "a priori", constrói a ordem do universo. Tudo o que nos aparece bem relacionado na natureza, foi relacionado pelo espírito humano. É a isto que Kant chama de sua revolução copernicana. Não é o Sol, dissera Copérnico, que gira em torno da Terra, mas é esta que gira em torno daquele. O conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objecto exterior. É o próprio espírito humano que constrói - com os dados do conhecimento sensível - o objecto do seu saber.

Na terceira parte de sua Crítica da Razão Pura, Kant interroga-se sobre o valor do conhecimento metafísico. As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o conhecimento, limitam o seu alcance. O que é fundamentado é o conhecimento científico, que se limita a pôr em ordem, graças às categorias, os materiais que lhe são fornecidos pela intuição sensível.

No entanto, diz Kant, é por isso que não conhecemos o fundo das coisas. Só conhecemos o mundo refractado através dos quadros subjectivos do espaço e do tempo. Só conhecemos os fenómenos e não as coisas em si ou noumenos. As únicas intuições de que dispomos são as intuições sensíveis. Sem as categorias, as intuições sensíveis seriam "cegas", isto é, desordenadas e confusas, mas sem as intuições sensíveis concretas as categorias seriam "vazias", isto é, não teriam nada para unificar. Pretender como Platão, Descartes ou Spinoza que a razão humana tem intuições fora e acima do mundo sensível, é passar por "visionário" e se iludir com quimeras: "A pomba ligeira, que em seu voo livre fende os ares de cuja resistência se ressente, poderia imaginar que voaria ainda melhor no vácuo. Foi assim que Platão se aventurou nas asas das ideias, nos espaços vazios da razão pura. Não se apercebia que, apesar de todos os seus esforços, não abria nenhum caminho, uma vez que não tinha ponto de apoio em que pudesse aplicar suas forças".

Entretanto, a razão não deixa de construir sistemas metafísicos porque sua vocação própria é buscar unificar incessantemente, mesmo além de toda experiência possível. Ela inventa o mito de uma "alma-substância" porque supõe realizada a unificação completa dos meus estados d'alma no tempo e o mito de um Deus criador porque busca um fundamento do mundo que seja a unificação total do que se passa neste mundo... Mas privada de qualquer ponto de apoio na experiência, a razão, como louca, perde-se nas antinomias, demonstrando, contrária e favoravelmente, tanto a tese quanto a antítese (por exemplo: o universo tem um começo? Sim pois o infinito para trás é impossível, daí a necessidade de um ponto de partida. Não, pois eu sempre posso me perguntar: que havia antes do começo do universo?). Enquanto o cientista faz um uso legítimo da causalidade, que ele emprega para unificar fenómenos dados na experiência (aquecimento e ebulição), o metafísico abusa da causalidade na medida em que se afasta deliberadamente da experiência concreta (quando imagino um Deus como causa do mundo, afasto-me da experiência, pois só o mundo é objecto de minha experiência). O princípio da causalidade, convite à descoberta, não deve servir de permissão para inventar.

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