Hume começa, tal como Locke, por considerar os conteúdos da
mente, os objectos do entendimento humano ou – nas suas palavras – as
percepções da mente ou materiais do pensamento. Hume divide estes conteúdos em
impressões e ideias. Há uma clara distinção, já notada por Locke, entre sentir
realmente dor, calor, raiva, ver uma paisagem, ouvir uma sirene ou desejar uma
bebida fresca e recordar mais tarde ou imaginar estas experiências. Hume usa o
termo «impressões» para indicar «as nossas percepções mais vívidas, quando
ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos».
Qual, para Hume, é a relação entre ideias e
impressões? Hume afirma que «todas as nossas ideias ou percepções mais
débeis são cópias das nossas impressões ou percepções mais “vívidas”». Por
outras palavras, as ideias derivam apenas da experiência. É claro que Hume sabe
que algumas ideias – por exemplo, a minha ideia de unicórnio – não correspondem
exactamente a uma impressão particular. Mas as partes que compõem a minha ideia
de um unicórnio – ideias de cavalos e de chifres – são cópias de coisas que já
vi no mundo. Limitei-me a combinar ideias derivadas da experiência de uma maneira
nova. A ideia de Hume é que apesar de a mente parecer porventura quase
ilimitada na sua capacidade de imaginar e pensar abstractamente, a matéria
bruta sobre a qual ela opera é sempre extraída de impressões.
É este o cerne do empirismo, e Hume oferece alguns
argumentos em sua defesa. Sugere que pensemos nas nossas próprias ideias e que
tentemos apontar uma que não dependa de uma impressão original. Ataca também
directamente a ideia favorita dos racionalistas – a ideia de Deus –, e mostra
que podemos adquiri-la pensando nas qualidades das nossas mentes exagerando
depois tanto quanto quisermos o que há nelas de bom e de sábio. Finalmente,
considera os indivíduos que têm falta de uma aptidão sensorial – os cegos, por
exemplo – e nota que estes não têm nenhuma ideia de cor. A explicação,
argumenta, é que as ideias são cópias das impressões, e que quem nunca teve
impressões relevantes não pode ter as ideias correspondentes.
Há certos factos sobre impressões e ideias que nas
mãos de Hume têm consequências filosóficas de longo alcance. Comparadas com as
impressões, as ideias são naturalmente fracas e obscuras e é fácil cometer dois
tipos de erros quando pensamos sobre elas. Em primeiro lugar, podemos confundir
uma ideia com outra, podemos pensar que se justifica tirar uma certa conclusão
acerca de uma ideia quando o que realmente acontece é que estamos a pensar numa
ideia semelhante, mas diferente. Em segundo lugar, e pior, usamos palavras para
representar ideias, e o nosso discurso pode desenrolar-se alegremente mesmo que
as partes relevantes da nossa linguagem não tenham correspondência com alguma
ideia fixa ou determinada. Numa disputa filosófica, quando não estamos a falar
em cavalos e de chifres, mas em ideias muito complexas e abstractas, é fácil
termos uma conversa em que são usadas as mesmas palavras para mencionar coisas
diferentes. Podemos até discutir sobre nada. A nossa disputa poderá ser sobre
ideias ilusórias, meros fantasmas sem base na experiência – o equivalente
filosófico dos unicórnios.
Estas reflexões fornecem um procedimento que nos
permite remover as ideias fictícias e encontrar saídas para as disputas
filosóficas, e mesmo para acabar com elas. Hume escreve:
Quando por conseguinte temos alguma suspeita de que um termo
filosófico é empregue sem nenhum significado ou ideia (como é muito
frequente), basta-nos perguntar sobre a impressão de que a ideia
supostamente deriva. E se for impossível encontrar alguma, isto servirá
para confirmar a nossa suspeita. Ao clarificar assim as ideias, podemos razoavelmente
esperar que possam ser removidos todos os conflitos que possam surgir sobre a
sua natureza e realidade.
As consequências destas linhas são estonteantes.
Consideremos a ideia de um eu durável, algo de
substancial que persiste por detrás das muitas mudanças que experimentamos ao
vivermos a vida. Suponho, por exemplo, que esta manhã sou essencialmente o
mesmo eu que era quando me fui deitar a noite passada. Não só isso, acho
também que sou o mesmo eu que era na juventude que desaproveitei. Acho que
serei o mesmo eu enquanto viver. Sem dúvida, algumas coisas mudaram: cresci,
ganhei algumas cicatrizes, o meu cabelo está a tornar-se um pouco
grisalho. Contudo, parece haver algo de essencial, o meu verdadeiro eu,
que persiste em todas estas alterações acidentais.
Se concordarmos com o princípio de Hume sobre a
relação entre ideias e impressões, e se estivermos convencidos de que o seu
método de remover ideias fictícias é o caminho certo, temos apenas que
perguntar: «De que impressão é a minha ideia derivada?» Ao olhar para
dentro de mim, afirma Hume, não encontro nada, excepto uma série de impressões
fugazes – ódio, amor, calor, dor, imagens, sons, cheiros e coisas do género –,
mas nada permanente, nada que persista em todas as alterações. Em suma, nenhuma
impressão corresponde à nossa ideia de eu. A ideia presente na
palavra «eu» pode juntar-se a «unicórnio»: «eu» é uma
palavra que expressa uma ideia ilusória, uma ficção da imaginação.
Mas as coisas tornam-se muito piores. A abordagem que
Hume faz da natureza do entendimento humano começa com uma distinção entre dois
tipos de «objectos da razão humana»: relações de ideias e matérias de
facto. As relações de ideias podem ser descobertas apenas pela razão. Podemos
saber que os solteiros são homens não casados ou que duas vezes cinco é metade
de vinte pensando apenas sobre as relações entre as ideias em causa. As
matérias de facto, porém, podem apenas ser descobertas pela experiência.
Podemos meditar o tempo que quisermos sobre a proposição de que o sol está a
brilhar, mas só saberemos se ela é verdadeira olhando pela janela. Há outra
diferença entre estes dois tipos de proposição. O contrário de uma matéria de
facto é possível, mas se negarmos uma relação entre ideias verdadeira,
incorremos numa contradição. O sol pode não ser brilhante, mas não se pode
estar mais longe da verdade do que quando alegamos que os solteiros são
casados.
James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy
Books (London, 2006, págs. 66-68). Trad. Maria Miguel Pires (rev.
científica Logosferas).
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