O 'método da dúvida' de Descartes implica pôr de lado qualquer crença ou
conhecimento que admitam a mais pequena dúvida, por mais improvável ou
absurda que essa dúvida possa ser, no intuito de ver se resta alguma
coisa. Se restar alguma coisa é precisamente porque é invulnerável à
dúvida: é certo. Uma vez que o objectivo de Descartes nas Meditações
é o de descobrir o que pode ser conhecido com certeza, o método da
dúvida é crucial, pois constitui o caminho para o seu objectivo. A
tentativa de considerar cada uma das suas crenças ou pretensões de
conhecimento e submetê-las a escrutínio seria uma tarefa impossivelmente
longa, de modo que Descartes teve necessidade de uma estratégia geral
para pôr de lado todo o corpo de crenças dubitáveis. Procurou alcançá-la
utilizando argumentos cépticos.
É preciso notar que o uso de argumentos cépticos por parte de Descartes
não faz dele um céptico. Longe disso. Ele usa-os meramente como um
instrumento heurístico para mostrar que nós possuímos efectivamente
conhecimento. Ele é, portanto, um 'céptico metódico' e não um 'céptico
problemático', entendo-se por esta última expressão alguém que pensa que
os problemas colocados pelos cépticos são sérios e colocam uma genuína
ameaça à nossa ambição de adquirir conhecimento. Acontece que, desde o
tempo de Descartes, muitos filósofos pensaram que ele não produziu uma
resposta adequada às dúvidas cépticas que ele próprio levantou e que,
por conseguinte, o cepticismo é deveras um problema. O próprio Descartes
não pensava de todo assim.
As considerações cépticas que Descartes usou (…) merecem aqui
referência. A primeira delas é a de recordar que os sentidos por vezes
nos conduzem no caminho do erro. Equívocos perceptivos, ilusões e
alucinações podem levar, e ocasionalmente levam, a crenças falsas. Isto
pode fazer com que não depositemos confiança no que pensamos conhecer
através da experiência dos sentidos, ou, no mínimo, que sejamos
cautelosos antes de confiarmos nela como fonte de verdade. Não obstante,
diz Descartes, haverá muita coisa em que eu acredito com base na minha
experiência - tal como, por exemplo, que tenho mãos e que estou a
segurar um pedaço de papel com elas, que estou sentado numa poltrona
defronte de uma lareira, etc. e que duvidar disto seria uma loucura,
mesmo dada a falta de fiabilidade dos sentidos. Mas, apesar disso, diz
Descartes, continuaria a haver muita coisa em que eu acreditaria com
base na minha experiência actual - como, por exemplo, que tenho mãos e
que estou a segurar com elas uma folha de papel, que estou sentado numa
poltrona em frente da lareira, e assim por diante, coisas das quais
seria uma loucura duvidar, não obstante a frequente falta de fiabilidade
dos sentidos.
Mas será mesmo loucura duvidar destas coisas? Não, diz Descartes - e
aqui ele vem com o seu segundo argumento - porque muitas vezes sonho
quando durmo e se estou agora a sonhar que estou sentado em frente à
lareira segurando um pedaço de papel, o pensamento de que assim estou é
falso. Para estar certo de assim estar teria de poder excluir a
possibilidade de estar meramente a sonhar com isso. Como pode isso ser
feito? Parece difícil, senão impossível."
A. C. Grayling. Descartes (London: Pocket Books, 2005), pp. 281-4. Trad. Carlos Marques.
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