sábado, 16 de maio de 2020

Texto para resumo - Joana Lousa 11B, Rafael Maia I


 A Fonte, Marcel Duchamps

A questão da arte é a questão ‘o que é a arte?’ Esta questão tem sido importante tanto na estética como na prática artística do século XX. Em certas ocasiões, parece que os artistas tiveram de se confrontar com ela para que o seu trabalho fosse levado a sério pelo mundo da arte. No momento em que escrevo, o artista belga Francis Alys resolveu enviar um pavão vivo à Bienal de Veneza em vez de comparecer ele mesmo. A actividade do pavão é apresentada como uma obra de arte intitulada O Embaixador. Os agentes britânicos do artista forneceram um comentário esclarecedor sobre o significado desta obra de arte:

A ave pavonear-se-á em todas as exposições e festas como se fosse o artista em pessoa. É anedótico, insinuando a vaidade do mundo da arte no espírito das velhas fábulas de animais.

Presume-se que alguém estaria à mão para limpar as obras menores que este substituto de artista foi espalhando durante a Bienal. Talvez estas venham a ser exibidas numa futura Bienal.
Alys não é de modo nenhum o primeiro artista a apresentar um animal vivo como uma obra de arte. Por exemplo, Uma Obra de Arte Autêntica de Mark Wallinger (ver p. ) é um cavalo de corrida que já competira. Não se pretende que o nome seja entendido como metáfora. É literalmente uma obra de arte. É um autêntico cavalo de corrida, bem como uma autêntica obra de arte. Pôr um título ao cavalo e publicitar a sua existência desafia a maioria das perspectivas aceites acerca do que é a arte. E esse é, num certo sentido, o objectivo – ou, pelo menos, boa parte dele. Na criação de obras de arte como estas – um género apelidado ‘objectos ansiosos’ pelo crítico de arte Harold Rosenberg – os artistas aproximam-se da condição de filósofos. Vêem os seus predecessores como proponentes de uma teoria da arte que refutam claramente com um contra-exemplo bem escolhido. Com o tempo, tais contra-exemplos são eles próprios absorvidos no mainstream, ao perderem a sua capacidade de chocar. Tornar-se-ão por fim naquilo que uma nova vanguarda porá em causa. Deste modo evolui a arte em direcções estranhas e imprevisíveis.
O mais famoso destes gestos disruptivos – central na maioria das discussões sobre a questão da arte – é a Fonte de Marcel Duchamp. Trata-se de um urinol de porcelana com o pseudónimo ‘R. Mutt’ nele pintado grosseiramente, enviado em 1917 à exposição da Sociedade para a Defesa dos Artistas Independentes em Nova Iorque. A exposição era supostamente aberta – os participantes tinham de pagar seis dólares, podendo assim exibir dois trabalhos. Duchamp pagou a inscrição, mas o seu trabalho foi, não obstante, rejeitado. O presidente da mesa declarou à imprensa que a Fonte de Duchamp não era ‘segundo nenhuma definição, uma obra de arte’. A fotografia da Fonte de Alfred Stieglitz apareceu no segundo número de uma revista, O Cego, juntamente com uma discussão ‘do caso Richard Mutt’, que incluía a seguinte justificação (em resposta à acusação de que a obra era ‘uma simples peça de canalização’ e não arte):

Não é importante se foi ou não o Sr. Mutt que fez a fonte com as suas próprias mãos. Ele ESCOLHEU-a. Pegou num objecto vulgar do quotidiano, colocou-o de modo a que o seu significado utilitário desaparecesse sob o novo título e ponto de vista - criou um novo pensamento sobre esse objecto.
Portanto, tratava-se de uma obra de arte segundo uma certa definição. Com a Fonte e outros ‘readymades’ (literalmente, ‘prontos a usar’) – um termo técnico inventado por Duchamp –, Duchamp abalava a confiança sobre o que a arte podia e devia ser. Quer a Fonte tenha começado por ser uma brincadeira ou não, aquilo que Duchamp visava com ela veio a tornar-se um assunto sério com o passar do tempo. A ideia de que todas as obras de arte têm de ser o produto da mão do artista, de que têm de ser belas esteticamente ou profundas emocionalmente, é dificilmente sustentável quando obras como a Fonte são aceites como parte do mainstream, como de facto veio a acontecer.

Nigel Warburton, The Art Question (London, 2003). Trad. Carlos Marques.



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