quinta-feira, 1 de junho de 2017

O sentido da vida




DEUS E O SENTIDO DA VIDA I
(ENTRE A ESCRAVIDÃO E A INSIGNIFICÂNCIA?)

As questões sobre o sentido e o propósito [da vida] nem sempre perturbaram as pessoas como acontece hoje. Numa era religiosa estas questões eram deixadas ao cuidado de um sábio Criador. Este Criador, acreditava-se, fez o mundo, e tudo o que nele existe, com um propósito. O Homem, e cada homem individual, era parte de um grande desígnio. Além disso, o homem ocupava um lugar de especial importância nesse desígnio, tendo sido feito ‘à imagem de Deus’ por um acto especial de criação. Foi-lhe dado o poder da razão que o colocou acima dos animais. Além disso, foi dotado, ao contrário destes últimos, de uma alma imortal. Isto significava que a morte não era o fim da vida de uma pessoa, mas apenas uma passagem para outra forma de existência superior, de acordo com o propósito de Deus. A terra e todas as suas criaturas foram dadas ao homem. Neste grande plano, a existência delas está ao serviço dos humanos. O lugar onde os humanos habitam, a terra, ocupava um lugar central no cosmos, tendo o sol e os outros corpos celestes sido criados para seu benefício.

O que resta destas crenças hoje? Hoje acreditamos que a terra é um planeta menor circulando em torno do sol, ele próprio uma estrela indistinta, uma entre um vasto número de estrelas pertencentes a uma galáxia que, por sua vez, faz parte de um conjunto inumerável ou mesmo infinito de galáxias. Este planeta menor apareceu devido a uma explosão casual de materiais cósmicos, sofreu vários processos químicos e continuará a existir e a ser uma casa onde se pode viver até que as condições voltem a mudar, quem sabe se devido a uma pequena mudança da temperatura do sol. É-nos dito que a vida surgiu provavelmente de uma combinação química acidental e que há razões para pensar que as mesmas condições possam surgir, ou tenham surgido, noutra parte do universo. A teoria da seleção natural diz-nos que a espécie humana não existe por um ato especial de Deus. Em vez disso, é o resultado de um processo de seleção cego decorrente da luta pela sobrevivência, tendo evoluído por pequenos passos impercetíveis a partir de criaturas semelhantes a macacos, sendo o chimpanzé moderno um primo próximo. Os psicólogos dizem-nos que o pensamento e ação humanas são em larga medida determinados por processos obscuros inconscientes e não pela luz da razão. Além disso, apesar de ser válido que o homem detém poderes de discurso e de raciocínio especiais, está longe de ser claro que devamos considerar estes poderes mais especiais que estes ou aqueles poderes notáveis característicos de outros animais. Não há razão para pensar que o homem é melhor ou ‘superior’ e, olhando para as suas atividades destruidoras, até seria razoável fazer o juízo oposto.

E que dizer da crença no plano de Deus e também da vida após a morte? Há ainda muita gente que defende estas ideias. Trata-se, no entanto, de uma minoria, pelo menos no mundo ocidental. Mesmo os crentes religiosos, cercados por uma cultura secular, não se sentem confortáveis com as perspetivas religiosas sobre o sentido e propósito como antigamente.

As conceções modernas do homem e do mundo não resultam meramente da substituição de uma explicação ou teoria por uma outra. Houve uma mudança no próprio conceito de explicação e quanto ao que uma explicação deve ser. Antes pensava-se que o único tipo de explicação real ou realmente satisfatória teria de referir-se a um propósito. Explicar-se-ia um fenómeno dizendo para que servia, qual o propósito que lhe dava um homem, animal ou Deus. Havia também a explicação causal que se referia ao que precedeu o fenómeno, mas este tipo de explicação era entendido como incompleto e inferior. Era apenas com o outro tipo que podíamos obter uma compreensão real. Nos tempos modernos, porém, e especialmente desde a época de Hume, a explicação causal suplantou largamente o outro tipo, o tipo teleológico. As teorias científicas modernas não são expressas em termos teleológicos e as modernas leis da natureza não são acerca de fins e de propósitos, mas acerca de regularidades observadas no mundo. Explicamos porque acontece algo, não olhando para a frente em direção a um fim ou objetivo, mas olhando para trás para uma causa antecedente.

Num certo sentido, estas explicações são menos satisfatórias do que as explicações teleológicas. A explicação que faz referência às leis da natureza diz, com efeito, que um acontecimento ou sequência de acontecimentos ocorre porque as coisas sempre assim ocorrem. Porém, isto é apenas ligar um facto bruto (um facto particular) a outro (uma regularidade geral). Nesse sentido, diz-se muitas vezes que a ciência moderna é, no fim de contas, meramente descritiva. Diz-nos como acontecem as coisas e não porquê. Uma explicação teleológica, ao invés, dá sentido e significado ao acontecimento. Isto é particularmente claro no caso de uma ação humana consciente, na qual a perceção do significado da ação pode ser dado pelo agente em termos do propósito deste ou desta. Se este tipo de explicação pudesse ser aplicado aos fenómenos naturais em geral, também eles teriam este género de significado. Mas, como já disse, este modo de explicar foi largamente abandonado em favor do outro tipo de explicação, ‘sem sentido’, que se mostrou mais frutuoso em outros aspetos.

Qual o impacte destas mudanças na nossa conceção de nós mesmos? ‘Poderia argumentar-se, escreve Kurt Baier, que quanto mais claramente compreendemos as explicações dadas pela ciência, mais somos levados para a conclusão de que a vida humana não tem um propósito e, portanto, um sentido’. Baier rejeita esta conclusão. Nota que no sentido habitual de ‘propósito’, as vidas humanas não estão menos ligadas a um propósito do que estavam antes. Continuamos a viver grande parte das nossas vidas perseguindo objetivos de um tipo ou de outro. A questão ‘Porque estás a fazer isso?’, ou seja, ‘Qual o teu propósito?’, continua a ser posta tanto quanto o era antes e uma resposta satisfatória pode ser dada em muitos casos. É verdade que algumas pessoas vivem as suas vidas com menos rumo do que outras, mas também neste caso sempre assim foi e nada tem a ver com os desenvolvimentos científicos e com a moderna conceção do lugar do homem no mundo. De facto, segundo Baier, ‘A ciência não só não nos roubou nenhum propósito que tínhamos antes, mas apetrechou-nos com um poder muito maior para atingir estes propósitos’.

Baier distingue ainda um uso secundário de ‘propósito’, aplicado a coisas e não a pessoas, como quando perguntamos ‘Qual o propósito daquele aparelho que instalaste na oficina?’ Neste caso, não estamos a dizer que o objeto é motivado por um propósito. A ideia é antes a de que lhe é dado um propósito, o propósito da pessoa que o fez ou instalou. É este sentido de propósito diminuído pela perspetiva científica? Não. Continuamos a fazer todo o género de coisas destinadas a cumprir um propósito dizendo, neste sentido, que ‘têm um propósito’.

Mas o que dizer do homem? Pode dizer-se que o homem, na perspetiva religiosa, cumpre um propósito, em vez de perseguir propósitos por si. E esta atribuição de propósito, esta resposta à questão sobre o propósito da vida, fica fora do nosso alcance uma vez abandonada a perspetiva religiosa. Para Baier, porém, esta resposta sempre foi desprovida de valor. ‘Atribuir a um ser humano um propósito neste sentido... é ofensivo. É degradante para um homem ser visto como algo que cumpre um propósito’. Ao tratar um homem dessa forma, diz Baier, ‘reduzi-lo-íamos ao nível do utensílio, do animal doméstico ou talvez do escravo, tratá-lo-íamos, como na frase de Kant, meramente como um meio para os nossos fins, não como um fim em si mesmo’.

Estas observações são verdadeiras e importantes. São elas relevantes? Se nós tratarmos seres humanos dessa maneira, como ‘cumprindo um propósito’, não os trataremos com o devido respeito e o nosso tratamento seria moralmente ofensivo. Mas daqui não se segue que os seres humanos seriam degradados por servir o plano de Deus, que Ele os degrada ao tratá-los dessa forma ou ao criá-los para o Seu propósito. Uma observação similar pode ser feita acerca da relação entre homens e animais. A maior parte das pessoas diria que não é degradante para um animal o ser usado para um propósito. Por exemplo, se alguém compra um cão para desencorajar os ladrões, isto não seria moralmente degradante ou ofensivo. 

Os crentes religiosos não são, e não precisam de se sentir, ofendidos pela ideia de que existem para cumprir um propósito de um ser superior. Podem também afirmar que isto dá às suas vidas o tipo de propósito e sentido que a perspetiva científica só por si lhes não poderia dar.

As observações de Baier acerca do papel permanente e, na verdade, inevitável da existência de um propósito nas nossas vidas não nos ajudam também quanto ao sentimento de insignificância que resulta da revolução científica. Ficamos chocados quando tomamos conhecimento destes factos sobre a situação humana no espaço e no tempo e ficámos chocados quando estas ideias foram introduzidas pela primeira vez. Segue-se delas que as nossas vidas são realmente sem sentido? É claro que não há um silogismo que procede de premissas acerca de cosmologia ou da seleção natural para a conclusão de que a nossa vida é desprovida de sentido. E deve notar-se, como faz Baier, que há critérios independentes de questões de cosmologia ou de história natural que podem ser usados para descrever uma vida humana quer como plena de sentido quer como desprovida dele.

No entanto, a imagem científica priva-nos de sentido numa aceção diferente. Há uma conexão entre sentido e importância e se a imagem científica é correta, não temos a importância que pensávamos ter. Esta conexão entre sentido e importância está refletida no uso da palavra ‘insignificante’. Algo que não tem importância pode ser descrito como insignificante ou (nessa aceção) sem sentido. Podemos entender desta maneira o veredicto de Macbeth ‘a vida não é mais do que uma sombra em movimento ... que nada significa’.

Oswald Hanfling, The Quest For Meaning (Oxford, 1987), pp. 42-46. Tradução de Carlos Marques.

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