sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Texto para resumo João 11E


Já David Hume foi bastante crítico em relação a Descartes nesta questão (de haver um conhecimento absoluto) e avançou com a sua própria tese sobre o assunto. Diz Bertrand Russel sobre o escocês:

"O que preocupa Hume é o conhecimento incerto, tal como o que é obtido de dados empíricos por inferências que não são demonstrativas. Isso inclui todo o nosso conhecimento a respeito do futuro, e a respeito de partes não observadas do passado e do presente. De facto, inclui tudo excepto, por um lado, observação directa, e, por outro, a lógica e a matemática."

Em primeiro lugar, David Hume separa conhecimento de relação de ideias e conhecimento de factos ou probabilidade. Se no conhecimento as “relações de ideias são dependentes das próprias ideias”, na probabilidade existem três relações: a identidade, as situações no tempo e lugar e a causalidade.

Assim, enquanto a negação do conhecimento de relação de ideias implica contradição, na probabilidade (conhecimento dos factos), a negação é igualmente uma probabilidade. Desse modo, as descobertas filosóficas devem ser caracterizadas pelo probabilismo, pois o Homem tem várias limitações temporais e perceptivas. Ou seja, todas as explicações devem ser vistas como tentativas destinadas a serem substituídas por outras, o que dá espaço à opinião e à controvérsia.

David Hume rejeita “todo o tipo de ilusões metafísicas”, toda a crença em milagres. Segundo ele, os milagres violam as leis da Natureza, que se baseiam na experiência.

No entanto, Hume, não é um céptico radical que negue totalmente a capacidade do sujeito para conhecer algo, o que acaba por ser uma contradição, pois ao afirmar a impossibilidade de alcançar o conhecimento, já está a concluir algo – conhecer que o conhecimento não é possível.

Hume nega a existência de princípios evidentes inatos em nós. Para ele, todo o conhecimento é como que uma cópia de algo, cujo objecto já tivemos acesso de alguma maneira.

Hume põe ainda o problema da causalidade em cima da mesa. Ele refuta o princípio da causalidade segundo o qual todas as acções têm uma relação causa efeito, submetendo-o a uma análise critica bastante rigorosa, baseando-se na sua teoria de conhecimento segundo a qual sem impressão sensível não há conhecimento, visto todas as ideias derivarem das sensações, à qual deve corresponder uma impressão.

A partir daí, ele negou que possamos fazer qualquer ideia de causalidade pois ela é apenas resultado do nosso hábito mental, visto que na Natureza nada nos mostra que sempre que acontece alguma coisa, tem que acontecer outra.

Só temos essa ideia porque nos habituamos a ver a sucessão de fenómenos um por um, o que nos induziu em erro.

Por exemplo, quando está vento e uma árvore abana dizemos que esta é uma relação causa efeito, quando nada nos prova que assim é. Apenas o dizemos porque nos habituamos a ver os dois fenómenos ocorrer muitas vezes simultaneamente. A experiência até nos pode dizer que o vento pôs os galhos da árvore em movimento, mas ela nunca nos diz nada sobre acontecimentos futuros, com os quais ainda não tivemos qualquer contacto: única fonte de conhecimento valida. Isto porque a inferência causais estão sempre sujeitas ao erro perante novos objectos, novos sujeitos e novas situações, que podem mudar as ideias que temos em nós. Desse modo, vemos que para Hume, o conhecimento só pode corresponder a acções passadas, ou quando muito actuais e nunca futuras. Para ele, “cada caso, é um caso” e nada nos diz o que vai acontecer amanhã.

Esta questão é de grande importância para David Hume, porque o racionalismo de Descartes apoia-se sobretudo nas relações causa efeito.

Provando que não existem relações na Natureza e apenas fenómenos desligados uns dos outros, Hume rejeita, o inatismo cartesiano, introduzindo um dado novo nas teses empiristas afirmando que a identidade entre a ordem das coisas e das ideias é fruto dos nossos hábitos mentais ou na crença que existe uma ligação necessária entre os fenómenos.

A partir daí, Hume nega as três verdades de René Descartes (o ser, Deus e o mundo).

Em relação ao “eu”, que Descartes provara através da intuição, Hume não acredita que o pensamento intuitivo seja um caminho seguro para a verdade, devido à impossibilidade do Homem poder enumerar causas.

Todos nós mudados em muitos aspectos à medida que os anos passam, sem que nós próprios mudemos em si mesmo. No entanto, Hume nega a distinção entre os vários aspectos de uma pessoa e o sujeito que transporta essas mesmas características. Ou seja, para o escocês, quando fazemos uma introspecção, notamos um conjunto de percepções, sentimentos, memorias e pensamento, mas nunca nos apercebemos de algo a que possamos chamar de “eu”. Ou seja, o ser humano não passa de um conjunto de “percepções transitórias” que a nada pertencem e de um composto de elementos relacionados em permanente mudança.

Depois, relativamente à questão da existência de Deus, que Descartes provara baseando-se em que tudo tem uma causa, e a primeira dessas causas era Deus,

Hume diz ser impossível conhecer Deus pois a provas cartesianas estão fundadas na existência de ideias inatas, originárias da razão, nas quais não acredita. Ou seja, para ele o Homem não pode conhecer algo do qual não tem uma única percepção.

Por fim, Hume nega igualmente a existência do mundo exterior que para ele não passa de uma crença. E é uma crença que não podemos eliminar, mas que também não podemos provar por qualquer tipo de argumento, seja ele dedutivo ou indutivo.

David Hume também refuta a ideia de um conhecimento universal, claro e distinto. Visto que dentro das limitações o nosso conhecimento é sempre incompleto, a realidade reduz-se aos fenómenos aos quais os nossos sentidos têm acesso, sendo que cada um pode ter sensações diferentes nessa experiência, abrindo-se espaço à subjectividade.

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Textos para os trabalhos sobre David Hume


1. Leitura de um dos textos para cada um dos trabalhos. retirar as ideias principais do texto e explicar. 

2. Elaborar um comentário crítico aos textos. 

Biografia do autor e principais tópicos da sua filosofia.

3. Quem escolher o Doc 1 tem que falar no empirismo e na origem das ideias; quem escolher o Doc 2 tem que falar do empirismo e na relação de causa-efeito.

4.Avaliação do diapositivo e da exposição oral.

5. Datas de entrega do diapositivo e exposição oral:  13 de Dezembro

DOC1

"Ensaio sobre o entendimento humano"

David Hume

Primeira parte

SECÇÃO II

DA ORIGEM DAS IDEIAS

"Cada um admitirá prontamente que há uma diferença considerável entre as perceções do espírito, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado, e quando depois recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de sua imaginação. Estas faculdades podem imitar ou copiar as perceções dos sentidos, porém nunca podem alcançar integralmente a força e a vivacidade da sensação original. O máximo que podemos dizer delas, mesmo quando atuam com seu maior vigor, é que representam seu objeto de um modo tão vivo que quase podemos dizer que o vemos ou que o sentimos. Mas, a menos que o espírito esteja perturbado por doença ou loucura, nunca chegam a tal grau de vivacidade que não seja possível discernir as perceções dos objetos. Todas as cores da poesia, apesar de esplêndidas, nunca podem pintar os objetos naturais de tal modo que se tome a descrição pela paisagem real. O pensamento mais vivo é sempre inferior à sensação mais embaçada. Podemos observar uma distinção semelhante em todas as outras perceções do espírito. Um homem à mercê dum ataque de cólera é estimulado de maneira muito diferente da de um outro que apenas pensa nessa emoção. Se vós me dizeis que certa pessoa está amando, compreendo facilmente o que quereis dizer-me e formo uma conceção precisa de sua situação, porém nunca posso confundir esta ideia com as desordens e as agitações reais da paixão. Quando refletimos sobre nossas sensações e impressões passadas, nosso pensamento é um reflexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porém as cores que emprega são fracas e embaçadas em comparação com aquelas que revestiam nossas perceções originais. Não é necessário possuir discernimento sutil nem predisposição metafísica para assinalar a diferença que há entre elas. Podemos, por conseguinte, dividir todas as perceções do espírito em duas classes ou espécies, que se distinguem por seus diferentes graus de força e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente denominadas pensamentos ou ideias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosóficos era necessário compreendê-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-nos, portanto, usar um pouco de liberdade e denominá-las impressões, empre gando esta palavra num sentido de algum modo diferente do usual. Pelo termo impressão entendo, pois, todas as nossas perceções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou que remos. E as impressões diferenciam-se das ideias, que são as perceções menos vivas, das quais temos consciência, quando refletimos sobre quais quer das sensações ou dos movimentos acima mencionados.

2 A primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento humano, que não apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas também nem sempre é reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar formas e aparências incongruentes não causam à imaginação mais embaraço do que conceber os objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num só planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num instante às regiões mais distantes do Universo, ou mesmo, além do Universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a Natureza se encontra em total confusão. Pode -se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradição. Entretanto, embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas ideias compatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois o sentimento que temos de nós mesmos nos permite conceber a virtude e podemos uni-la à figura e forma de um cavalo, que é um animal bem conhecido. Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagem filosófica: todas as nossas ideias ou perceções mais fracas são cópias de nossas impressões ou perceções mais vivas. Para prová-lo, espero que serão suficientes os dois argumentos seguintes. Primeiro, se analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais compostos ou sublimes que sejam, sempre verificamos que se reduzem a ideias tão simples como eram as cópias de sensações precedentes. Mesmo as ideias que, à primeira vista, parecem mais distantes desta origem mostram-se, sob um escrutínio minucioso, derivadas dela. A ideia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria. Podemos continuar esta investigação até a extensão que quisermos, e acharemos sempre que cada ideia que examinamos é cópia de uma impressão semelhante. Aqueles que dizem que esta afirmação não é universalmente verdadeira, nem sem exceção, têm apenas um método, e em verdade fácil, para refutá-la: mostrar uma ideia que, em sua opinião, não deriva desta fonte. Incumbir-nos-ia então, se quiséssemos preservar nossa doutrina, de mostrar a impressão ou perceção mais viva que lhe corresponde. Segundo, se ocorre que o defeito de um órgão prive uma pessoa de uma classe de sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar ideias correspondentes. Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um surdo dos sons. Restaurai a um deles um dos sentidos de que carecem: ao abrirdes as portas às sensações, possibilitais também a entrada das ideias, e a pessoa não terá mais dificuldade para conceber aqueles objetos. O mesmo fenômeno ocorre quando o objeto apropriado para estimular qualquer sensação nunca foi aplicado ao órgão do sentido. Um lapão ou um negro, por exemplo, não têm nenhuma noção do sabor do vinho. Apesar de haver poucos ou nenhum caso de semelhante deficiência no espírito, em que uma pessoa nunca sentiu ou que é completamente incapaz de um sentimento ou paixão próprios de sua espécie, constatamos, todavia, que a mesma observação ocorre em menor grau. Um homem de modos brandos não pode formar uma ideia de vingança ou de crueldade obstinada, nem um coração egoísta pode conceber facilmente os ápices da amizade e da generosidade. Em verdade, admitimos que outros seres podem possuir muitos sentidos dos quais não temos noção, porque as ideias destes sentidos nunca nos foram apresentadas pela única maneira por que uma ideia pode ter acesso ao espírito, isto é, mediante o sentimento e a sensação reais. Há, no entanto, um fenômeno contraditório que pode provar que não é absolutamente impossível que as ideias nasçam in dependentes de suas impressões correspondentes. Acredito que se concordaria facilmente que as várias ideias de cores diferentes que penetram pelos olhos, ou aquelas de sons conduzidas pelo ouvido, são realmente diferentes umas das outras, embora, ao mesmo tempo, parecidas. Ora, se isto é verdadeiro a respeito das diferentes cores, deve sê-lo igualmente para os diversos matizes da mesma cor; e cada matiz produz uma ideia diversa, independente das outras. Pois, se se negasse isto, seria possível, por contínua gradação dos matizes, passar insensivelmente de uma cor a outra completamente distante de série; se vós não admitis a distinção entre os intermediários, não podeis, sem absurdo, negar a identidade dos extremos. Suponde, então, uma pessoa que gozou do uso de sua visão durante trinta anos e se tornou perfeitamente familiarizada com cores de todos os gêneros, exceto com um matiz particular do azul, por exemplo, que nunca teve a sorte de ver. Colocai todos os diferentes matizes daquela cor, exceto aquele único, defronte daquela pessoa, decrescendo gradualmente do mais escuro ao mais claro. Certamente, ela perceberá um vazio onde falta este matiz, terá o sentimento de que há uma grande distância naquele lugar, entre as cores contíguas, mais do que em qualquer outro. Ora, pergunto se lhe seria possível, através de sua imaginação, preencher este vazio e dar nascimento à ideia deste matiz particular que, todavia, seus sentidos nunca lhe forneceram? Poucos leitores, creio eu, serão de opinião que ela não pode; e isto pode servir de prova que as ideias simples nem sempre derivam das impressões correspondentes, mas esse caso tão singular é apenas digno de observação e não merece que, unicamente por ele, modifiquemos nossa máxima geral."


DOC2

"Ensaio sobre o entendimento humano"

David Hume

Excerto da obra de David Hume, Ensaio sobre o entendimento humano,

SEGUNDA PARTE

"Entretanto, não chegamos ainda a nenhuma resposta satisfatória a respeito da primeira questão proposta. Cada solução gera uma nova questão tão difícil como a precedente e nos conduz a novas investigações. Quando se pergunta: qual é a natureza de todos os nossos raciocínios sobre os fatos? A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na relação de causa e efeito. Quando se pergunta: qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões sobre essa relação? Pode-se replicar numa palavra: a experiência. Mas, se ainda continuarmos com a disposição de esmiuçar o problema e insistirmos: qual é o fundamento de todas as conclusões derivadas da experiência? Esta pergunta implica uma nova questão que pode ser de solução e explicação mais difíceis. Os filósofos que se dão ares de sabedoria superior e suficiência têm uma tarefa difícil quando se defrontam com pessoas com disposições inquisitivas, que os desalojam de todos os esconderijos em que se refugiam, e que estão seguras de levá-los finalmente a um perigoso dilema, O melhor recurso para evitar esta confusão consiste em ter modestas pretensões e descobrir nós mesmos as dificuldades antes que nos sejam objetadas. Desta maneira, faremos de nossa ignorância uma virtude. Contentar-me-ei nesta seção com uma tarefa fácil: pretenderei apenas dar uma resposta negativa à questão aqui proposta. Digo, pois, que mesmo depois que temos experiência das operações de causa e de efeito, nossas conclusões desta experiência não estão fundadas sobre raciocínios ou sobre qualquer processo do entendimento. Devemos trata r de explicar e defender esta posição. Certamente, deve -se admitir que a natureza nos tem mantido a uma grande distância de todos os seus segredos, e que apenas nos tem concedido o conhecimento de algumas qualidades superficiais dos objetos, enquanto ela nos esconde os poderes e princípios dos quais depende inteiramente a ação desses objetos. Nossos sentidos nos informam a cor, o peso e a consistência do pão, porém, nem os sentidos e nem a razão jamais podem informar-nos sobre as qualidades que o fazem apropriado para alimentar e sustentar o corpo humano. A visão e o tato nos dão uma ideia do movimento real dos corpos, porém não podemos formar o mais remoto conceito da maravilhosa força ou poder que é capaz de manter indefinidamente em movimento um corpo, e que este nunca a perde, mas a comunica a outros. Mas, não obstante esta ignorância dos poderes1 e princípios naturais, sempre presumimos quando vemos qualidades sensíveis análogas que elas têm poderes ocultos análogos, e esperamos que a estas seguirão efeitos semelhantes àqueles que já temos experimentado. Se nos fosse mostrado um corpo de cor e consistência análogas às do pão que havíamos comido anteriormente, não teríamos nenhum escrúpulo em repetir o experimento, prevendo com certeza que ele nos alimenta rá e nos sustentará de maneira semelhante. Ora, eis um processo do espírito e do pensamento cujo fundamento gostaria de conhecer. Toda a gente está de acordo que não se conhece nenhuma conexão entre as qualidades sensíveis e os poderes ocultos e, por conseguinte, o espírito não é levado a tirar uma conclusão sobre a conjunção constante e regular daquelas, tendo por base algo que possa conhecer na natureza destas. Pode-se admitir que a experiência passada dá somente uma informação direta e segura sobre determinados objetos em determinados períodos do tempo, dos quais ela teve conhecimento. Todavia, é esta a principal questão sobre a qual gostaria de insistir: porque esta experiência tem de ser estendida a tempos futuros e a outros objetos que, pelo que sabemos, unicamente são similares em aparência. O pão que outrora comi alimentou-me, isto é, um corpo dotado de tais qualidades sensíveis estava, a este tempo, dotado de tais poderes desconhecidos. Mas, segue -se daí que este outro pão deve também alimentar-me como ocorreu na outra vez, e que qualidades sensíveis semelhantes devem sempre ser acompanhadas de poderes ocultos semelhantes? A consequência não parece de nenhum modo necessária. Pelo menos, deve-se reconhecer que aqui o espírito tira uma consequência; que deu um certo passo; que há um processo do pensamento e uma inferência que necessitam de uma explicação. Estas duas proposições não são de nenhum modo iguais: encontrei que tal objeto sempre tem sido acompanhado por tal efeito, e prevejo que outros objetos que são em aparência semelhantes, serão acompanhados por efeitos semelhantes. Concederei, se vós permitis, que uma das proposições pode ser legitimamente inferida da outra: sei, de fato, que ela sempre se infere. Mas, se vós insistis em que a inferência é feita por uma cadeia de raciocínios, desejaria que vós construísseis este raciocínio. A conexão entre estas proposições não é intuitiva. Requer-se um termo médio que permita ao espírito extrair tal inferência, se é que, verdadeiramente, é extraída mediante raciocínio e argumentos. Qual é o termo médio? Devo confessar, é algo que ultrapassa minha compreensão, e cabe mostrá-lo por aqueles que afirmam que realmente existe e que é a origem de todas as nossas conclusões acerca dos fatos. Certamente, este argumento negativo pode tornar-se inteiramente convincente no decorrer do tempo, se muitos filósofos hábeis e perspicazes dirigirem suas investigações neste sentido, e se ninguém for capaz de descobrir alguma proposição conectiva ou algum degrau intermediário que apoie o entendimento nesta conclusão. Mas, como se trata de dificuldade recente, os leitores não devem confiar em demasia na sua própria sagacidade a ponto de concluir que um argumento realmente não existe porque escapa à investigação. Por esta razão, é preciso empreender pesquisa mais difícil, e, por enumeração de todos os ramos de conhecimento humano, tratar de mostrar que nenhum deles pode proporcionar semelhante argumento. Todos os raciocínios dividem-se em duas classes: raciocínios demonstrativos, que se referem às relações de ideias, e os raciocínios morais (ou prováveis) que se referem às questões de fato e de existência. Parece evidente que os últimos não englobam argumentos demonstrativos, pois não é contraditório o fato de que o curso da natureza pode modificar-se e que um objeto, aparentemente semelhante aos já observados, possa ser acompanhado de efeitos diferentes ou contrários. Não posso conceber clara e distintamente que um corpo que tomba das nuvens — semelhante em todos aspetos a o da neve — tenha, todavia, sabor de sal e queime como o fogo? Há proposição mais inteligível do que esta: todas as árvores florescerão em dezembro-janeiro e definharão em maio -junho? Portanto, considera-se inteligível toda proposição concebida distintamente e sem contradição e, por conseguinte, jamais sua falsidade é mostrada por argumento demonstrativo ou raciocínio abstrato a priori. Entretanto, se os argumentos nos levarem a confiar na experiência e fazê-la padrão de nosso juízo futuro, deveremos considerá-los apenas prováveis, isto é, referentes às questões de fato e de existência real, de acordo com a divisão acima mencionada. Mas, se nossa explicação desta classe de raciocínio é considerada sólida e satisfatória, verificaremos que de fato não existe tal tipo de argumento. Temos dito que todos os argumentos referentes à existência se fundam na relação de causa e efeito; que nosso conhecimento daquela relação provém inteiramente da experiência; e que todas as nossas conclusões experimentais decorrem da suposição que o futuro estará em conformidade com o passado. Portanto, tentar provar a última conjetura, por argumentos prováveis, por argumentos referentes à existência, consiste, certamente, em girar num círculo e dar por admitido o que precisamente se problematiza."


quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Texto para análise e resumo Inês Pessoa 11E

O Cogito
Mas há uma crença, uma proposição resistente, da qual ele não pode absolutamente duvidar. Mesmo que ele seja enganado pelos seus sentidos, que esteja perdido num sonho, que a sua origem seja tal que ele seja um pensador imperfeito, até que um demónio vicioso esteja determinado a lançar sobre ele a confusão, permanece acima de qualquer dúvida que ele existe. Como Descartes diz: ‘ Penso, existo, é necessariamente verdadeiro, de cada vez que eu o expresso ou concebo na minha mente.’ Temos não só um dos mais famosos slogans filosóficos jamais escritos, mas também a primeira verdade, o fundamento sobre o qual Descartes reconstrói o seu sistema de conhecimento. A primeira verdade é por vezes designada ‘o Cogito’, abreviatura da expressão latina ‘Cogito, ergo sum’, ‘Penso, logo existo’.
O estatuto do Cogito tem ocupado os filósofos desde então. Numerosas questões se levantam quase instantaneamente. Trata-se da conclusão de um argumento? Não é claro como possa ser isso, visto que Descartes admitiu não ter crenças, quaisquer premissas com que construir um argumento. Além do mais, ele disse também não ter fé na sua capacidade de construir argumentos, não ter confiança na Lógica. Alguns vêem no Cogito não a conclusão de um argumento, mas uma espécie de descoberta epistémica: uma verdade indubitável na qual ele tropeça. Outros preocupam-se em saber se Descartes pode ter direito ao ‘Eu’ presente no Cogito. Não terá ele de direito apenas a qualquer coisa de menos, a dizer somente que o pensamento ocorre e não que quem o pensa é o próprio Descartes?

O círculo cartesiano

No entanto, Descartes tenta ir para a frente, olhando para novas verdades dentro da sua mente. Pensa um pouco acerca da natureza da dúvida e conclui que a dúvida é uma forma de imperfeição, em comparação com o conhecimento. A reflexão sobre a própria ideia de perfeição condu-lo a uma das várias provas da existência de Deus. Dada a natureza das suas várias dúvidas, Descartes sabe que não é um ser perfeito. Não obstante, tem a ideia de perfeição e essa ideia não lhe pode ter vindo de si mesmo ou de qualquer ser imperfeito. Pode apenas vir de um ser perfeito, nomeadamente, de Deus. Esta linha de pensamento conduz a uma versão do argumento ontológico de Anselmo. A ideia que Descartes tem de Deus é a de um ser com todas as perfeições. A existência é uma forma de perfeição; portanto, Deus tem de existir. Pensar em Deus como não existindo é como pensar num triângulo sem três lados. Assim como possuir três lados está no conceito de triangularidade, existência está no conceito de Deus. Se compreendemos bem a ideia de Deus, temos de aceitar que Deus existe.
O engano, nota Descartes, é uma forma de imperfeição e, por isso, conclui que Deus não pode ser enganador. Logo, podemos confiar nas nossas percepções claras e distintas; não somos sistematicamente enganados e a verdade tem de estar ao alcance das nossas capacidades. Reconstruir um sistema de crenças enraízado na percepção clara e distinta é a tarefa [seguinte].
Muitos notaram nesta linha de argumento um círculo demasiado fechado. Chegamos ao conhecimento de que Deus existe e não é enganador apenas porque aceitámos uma série de percepções claras e distintas. Sabemos que as nossas percepções claras e distintas são fiáveis porque Deus existe e não é enganador. Mas não depende a nossa fé nas percepções claras e distintas da prova de que Deus existe e não pressupõe essa prova a veracidade das nossas percepções claras e distintas?
O problema (…) é o de que o conhecimento parece ser uma coisa frágil. Descartes tem certamente sucesso na parte negativa do seu projecto, arrasando os fundamentos do conhecimento com os argumentos cépticos (…). No entanto, o seu esforço para erguer tudo a partir do nada constitui uma espécie de falhanço. Mas o seu objectivo principal, o de mostrar que uma compreensão científica do mundo é possível é algo que nós, modernos, tomamos como adquirido demasiado facilmente.

James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy Books. London & New York: Continuum, 2006.
Trad. Carlos Marques.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Texto para resumo Carolina 11E




Apesar de ter uma certeza, uma crença básica que a dúvida confirma como verdadeira, Descartes não pode ter mais nenhuma certeza, pois duvidou da existência do mundo, do que vê, até de ter um corpo. Todavia tem a crença que Deus é garantia da verdade desse mundo mas como prová-lo racionalmente?

Descartes conclui que Deus existe pelo facto da sua ideia existir em nós. Uma das passagens onde ele exprime melhor esta ideia é:

“Assim, dado que temos em nós a ideia de Deus ou do ser supremo, com razão podemos examinar a causa por que a temos; e encontraremos nela tanta imensidade que por isso nos certificamos absolutamente de que ela só pode ter sido posta em nós por um ser em que exista efectivamente a plenitude de todas as perfeições, ou seja, por um Deus realmente existente. Com efeito, pela luz natural é evidente não só que do nada nada se faz, mas também que não se produz o que é mais perfeito pelo que é menos perfeito, como causa eficiente e total; e, ainda, que não pode haver em nós a ideia ou imagem de alguma coisa da qual não exista algures, seja em nós, seja fora de nós, algum arquétipo que contenha a coisa e todas as suas perfeições. E porque de modo nenhum encontramos em nós aquelas supremas perfeições cuja ideia possuímos, disso concluímos correctamente que elas existem, ou certamente existiram alguma vez, em algum ser diferente de nós, a saber, em Deus; do que se segue com total evidência que elas ainda existem.”

Descartes, Princípios da Filosofia, I Parte, p. 64.


terça-feira, 25 de outubro de 2022

Texto para resumo Bianca 11E

 


“Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei; pois são tão metafísicas e tão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que se possa julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de Geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava. Depois, examinado com atenção o que eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se mui evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de crer que eu tivesse existido; compreendi por aí que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.”

Descartes, Discurso do Método, IV Parte

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Texto para resumo Pedro Claudino 11E

 

Foi uma estranha coincidência. Num dia da semana passada, quando a Noémia estava a pagar o café que bebera, o homem que estava atrás dela, vasculhando os bolsos, deixou cair o seu porta-chaves. A Noémia apanhou-o e não pôde deixar de reparar no coelhinho pendurado no porta-chaves. Ao receber o porta-chaves, o homem, cuja face era bastante peculiar, angulosa e pálida, mostrou-se um pouco embaraçado, dizendo “Trago-o sempre comigo, por razões sentimentais.” Corou e nada mais disse.

Logo no dia seguinte a Noémia estava para atravessar a rua quando ouviu um chiar de travões e uma pancada surda. Quase sem pensar deixou-se arrastar com outras pessoas que, como limalhas de ferro convergindo para um magnete, se precipitavam para o local do acidente. A Noémia tentou perceber quem era a vítima e viu a mesma face branca e irregular. Um médico estava já a examinar o homem. “Está morto.”

Ela teve de reportar à polícia. ‘Tudo o que sei é que ele bebeu um café ontem na pastelaria e que ele trazia sempre consigo um porta-chaves com um coelho branco.’ A polícia pôde confirmar a verdade de ambos os factos.

Cinco dias depois, a Noémia quase que se pôs aos gritos na pastelaria. Estando outra vez na bicha para pagar o café, deparou com uma pessoa em tudo semelhante ao mesmo homem que cinco dias antes estivera atrás de si. Ele percebeu o espanto dela sem se mostrar surpreendido. ‘Pensou que eu era o meu irmão gémeo, não foi?’, perguntou. A Noémia acenou com a cabeça. ‘Não é a primeira pessoa a reagir assim desde o acidente. Até porque frequentávamos a mesma pastelaria, embora habitualmente a horas diferentes.’

Enquanto o homem falava, a Noémia não pôde deixar de reparar no que o homem tinha nas mãos: um porta-chaves com um coelho branco. O homem também não se deixou impressionar com isso. ‘Sabe como são as mães; gostam de tratar os filhos de igual modo.’
A Noémia achou tudo isto desconcertante. Quando finalmente se acalmou, ficou preocupada com o seguinte: terei dito a verdade à polícia?

********

O que a Noémia disse à polícia foi ‘Tudo o que sei é que ele pagou um café ontem na pastelaria e que trazia sempre consigo um porta-chaves com um coelho branco.’ Ambos os factos se confirmaram verdadeiros. Mas estava ela certa, ao dizer que sabia que eles eram verdadeiros?
Muitos filósofos argumentaram que o conhecimento implica três condições. Para conhecer algo é preciso, primeiro, acreditar que esse algo é verdadeiro. Não se pode saber que Roma é a capital de Itália se estamos convencidos de que a capital é Milão. Em segundo lugar, aquilo em que acreditamos tem de ser verdadeiro. Não se pode saber que Milão é a capital de Itália, sendo que a capital é Roma. Em terceiro lugar, a nossa crença verdadeira tem de ser de alguma maneira justificada. Se nos acontece ficarmos convencidos sem boas razões de que Roma é a capital de Itália e isso se revela certo, não devemos dizer que possuíamos conhecimento. Tratou-se apenas de um palpite afortunado.

A Noémia possuía duas crenças verdadeiras sobre o morto. Também parecia que tinha justificação para as ter. Porém, parece que não sabia realmente que eram verdadeiras. Não sabia que o homem tinha um irmão gémeo que trazia consigo um porta-chaves idêntico ao do morto. Portanto, se o homem que morreu tivesse sido o irmão gémeo do homem que ela viu na pastelaria e se este último não tivesse estado na pastelaria no dia anterior, nem trouxesse consigo aquele porta-chaves, ela teria afirmado saber as mesmas duas coisas acerca dele, só que desta vez estaria enganada.

Para se ter verdadeiramente ideia de quão pouco ela sabia, note-se que ainda agora a Noémia não sabe se o homem que ela viu na pastelaria no dia antes do acidente era o gémeo que morreu no acidente ou o outro que ela viu na pastelaria uns dias depois. Ela não tem ideia de qual é qual.

A solução óbvia para este problema parece ser que é preciso precisar melhor a ideia de justificação. A Noémia não sabia, porque a sua justificação para dizer que sabia os dois factos sobre o morto não era suficientemente forte. Contudo, se assim é, então é preciso exigir que o conhecimento pressuponha condições de justificação de uma crença muito apertadas, seja ela qual for. E isso significa que quase tudo o que julgamos saber não se encontra suficientemente justificado para poder contar como conhecimento. Se a Noémia não sabe na verdade o que pensava saber sobre o homem que morreu, quer dizer que também nós não sabemos muito do que pensamos saber.

Julian Baggini, The Pig That Wants To Be Eaten and 99 other thought experiments (London, 2005, págs. 187-189). Trad. de Carlos Marques.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Texto para resumo Giovana- O conhecimento não pode surgir da sorte ou do acaso

Diz-se frequentemente que o conhecimento aspira à verdade, no sentido em que quando acreditamos numa proposição, acreditamos que ela é o caso (i. e. que é verdadeira). Quando aquilo em que acreditamos é verdadeiro, dá-se uma coincidência entre o que pensamos ser o caso e o que é o caso. Acertamos na verdade. No entanto, se a mera crença verdadeira é suficiente para 'acertar' na verdade, podemos interrogar-nos porque é que os epistemólogos, na sua busca por uma boa definição de conhecimento, não se dão imediatamente por satisfeitos, aceitando que conhecimento não é mais do que crença verdadeira - i. e. acertar na verdade.
Há realmente uma boa razão que explica porque é que os epistemólogos não se contentam com a ideia de conhecimento como crença verdadeira. É que uma pessoa pode possuir uma crença verdadeira por acaso, situação em que não poderíamos atribuir-lhe mérito por acertar na verdade. Suponhamos que Henrique fica convencido de que o cavalo Moça Sortuda irá ganhar a próxima corrida só porque achou o nome do cavalo engraçado. Esta não é claramente uma boa base sobre a qual devêssemos construir uma crença acerca do vencedor da próxima corrida de cavalos, visto que o facto de acharmos o nome do cavalo apelativo não tem influência sobre a prestação deste durante a corrida.
Suponhamos, no entanto, que a crença de Henrique acaba por se tornar verdadeira, que Moça Sortuda ganha de facto a corrida. É isto conhecimento? Intuitivamente não, pois a crença é verdadeira apenas por uma questão de sorte. Não esqueçamos que o conhecimento é algo que se alcança, algo que resulta do mérito de alguém, não podendo ser aquilo que alcançamos puramente por uma questão de sorte.
Para enfatizar este ponto, pensemos por um momento no que significa alcançar um feito noutra área, como no tiro com arco. Se alguém é um bom arqueiro, ao tentar atingir o centro do alvo em condições favoráveis (por exemplo, sem um vento demasiado forte), atingi-lo-á habitualmente. É isso que significa ser um bom arqueiro. A palavra 'habitualmente' é aqui importante, porque àqueles que não são bons arqueiros acontece-lhes às vezes acertar no centro do alvo, mas não habitualmente. É possível que apontem a seta e que, por sorte, atinjam o centro do alvo. Mas significa isto que quem acerta numa ocasião é um bom arqueiro? Não, pela simples razão de que essas pessoas não seriam capazes de repetir a façanha. Se tentassem outra vez o mais certo era que a seta desaparecesse no céu.
Possuir conhecimento é algo semelhante. Imaginemos que uma crença é uma seta que apontamos ao alvo, neste caso a verdade. Atingir o alvo e formar uma crença verdadeira é acertar, visto que temos sucesso numa dada ocasião. No entanto, formar uma crença verdadeira não é suficiente para possuir conhecimento, tal como não basta acertar no centro do alvo por mera sorte para se ser um bom arqueiro. O conhecimento tem de ser um resultado dos nossos esforços, em vez de um resultado que se alcança por puro acaso. Isto quer dizer que o modo como formamos uma crença deve, em circunstâncias normais, conduzir habitualmente à verdade.
Henrique, que forma a crença verdadeira de que Moça Sortuda ganhará a corrida só porque gostava do nome do cavalo, é como a pessoa a quem aconteceu acertar no alvo e que não é um bom arqueiro. Formar uma crença sobre a possível vitória de um cavalo, considerando apenas se o seu nome tem ou não tem graça, conduzirá habitualmente à formação de uma crença falsa.
Comparemos Henrique com alguém que genuinamente sabe que a corrida será ganha por Moça Sortuda. Essa pessoa pode ser, por exemplo, um poderoso gangster que viciou a corrida, drogando os outros cavalos para que Moça Sortuda ganhasse. Ele sabe que a corrida será ganha por Moça Sortuda, pois o modo como ele formou a sua crença, baseando-se na informação privilegiada de que dispunha para pensar que Moça Sortuda não poderia perder, conduzi-lo-á normalmente a uma crença verdadeira. Não é por uma questão de sorte que o gangster atinge o alvo da verdade.
Deste modo, o desafio para os epistemólogos é explicar o que é necessário juntar à mera crença verdadeira de modo a que se obtenha conhecimento. Em particular, os epistemólogos precisam de explicar o que tem de ser acrescentado à crença verdadeira para capturar esta ideia de que o conhecimento, em contraste com a mera crença verdadeira, é um autêntico feito do agente, algo de que ele é responsável, no sentido de uma crença obtida não apenas por uma questão de sorte.
 

Duncan Pritchard, What is This Thing Called Knowledge? (Abington & New York: 2006, p. 6). Trad. Carlos Marques.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Texto para resumo Cátia 11E - O que é o conhecimento?


Salvador Dali

"O conhecimento é um estado muitíssimo valorizado no qual uma pessoa está em contacto cognitivo com a realidade. Trata-se, portanto, de uma relação. De um lado da relação encontra-se um sujeito consciente, e do outro lado encontra-se uma porção da realidade  com a qual o conhecedor está direta ou indiretamente relacionado. Enquanto a relação direta é uma questão de grau, é conveniente pensar no conhecimento de coisas como uma forma direta de conhecimento relativamente ao qual o conhecimento acerca de coisas é indireto. Ao primeiro chama-se habitualmente conhecimento por contacto uma vez que o sujeito está em contacto, através da experiência, com a porção de realidade conhecida, ao passo que ao segundo tipo de conhecimento se chama conhecimento proposicional uma vez que aquilo que o sujeito conhece é uma proposição verdadeira acerca do mundo. Conhecer o Rodrigo é um exemplo de conhecimento por contacto, ao passo que saber que o Rodrigo é um filósofo é um exemplo de conhecimento proposicional. O conhecimento por contacto inclui não apenas conhecimento de pessoas e coisas, mas também conhecimento dos nossos estados mentais. De facto, os estados mentais daquele que conhece são muitas vezes tidos como porção de realidade mais diretamente conhecível.

O conhecimento proposicional tem sido muito mais exaustivamente discutido do que o conhecimento por contacto pelo menos por dois motivos. Por um lado, o conhecimento proposicional é a forma pela qual se comunica o conhecimento, o que significa que o conhecimento proposicional pode ser transferido de uma pessoa para outra, ao passo que o conhecimento por contacto não pode ser transferido de pessoa para pessoa, pelo menos de forma direta. Outra razão relacionada com esta é a que a realidade  tem uma estrutura proposicional ou, pelo menos, a proposição é a principal forma pela qual a realidade é compreensível para a mente humana. Assim, mesmo que a minha experiência do Rodrigo me leve a conhecer o Rodrigo, e a experiência das minhas emoções me leve a saber o que é possuir tais emoções, como teórica tenho dificuldades em responder à questão «o que é o conhecimento?» relativamente a ambos os casos. É mais fácil explicar o objeto do conhecimento quando se trata de uma proposição. Neste artigo seguirei o procedimento habitual concentrando-me no conhecimento proposicional, mas ao fazê-lo reconheço que a conveniência não implica necessariamente a sua grande importância.

As proposições são verdadeiras ou falsas, mas somente as proposições verdadeiras ligam o sujeito cognitivo com a realidade da forma desejada. Assim, o objeto do conhecimento no sentido que mais interessa aos filósofos é habitualmente visto como uma proposição verdadeira. Saber qual a natureza da verdade, das proposições e da realidade é uma questão metafísica. Por esta razão os epistemólogos não dirigem os seus esforços para estas questões quando escrevem sobre epistemologia, e assim as questões acerca da natureza do conhecimento não se centram no objeto do conhecimento, mas antes nas propriedades do próprio estado mental que fazem dele um estado de conhecimento. Deste modo, as investigações acerca do conhecimento dirigem a sua atenção para a relação de conhecimento centrando-se mais do lado do sujeito da relação do que do lado do objeto."

Linda Zagzebski, «O que é o Conhecimento?», 1999, pp. 92-93.