Críticas: Terá Leibniz razão?
A primeira dificuldade da posição de Leibniz é que a sua resposta
ao problema lógico do mal limita-se a explicar genericamente, mas não em
particular, como os males são compatíveis com a divindade teísta. Considere-se
um caso particular de sofrimento: uma criança de cinco anos, com uma doença
grave e incurável, morre, depois de dois anos de sofrimento intenso. Não só
sofreu ela, como sofreram os pais e familiares da criança, assim como os seus
amigos; além disso, foram gastos recursos imensos que poderiam ter sido usados
para fazer coisas criativas, como pintar quadros, praticar desportos ou
escrever sonatas. Leibniz não nos diz em pormenor qual é o bem maior do qual
todo este sofrimento é uma componente fundamental. Claro que podemos imaginar
alguns desses bens: o estoicismo da própria criança, a abnegação dos pais e
familiares, o profissionalismo e empatia profunda de médicos e enfermeiros.
Contudo, é pura e simplesmente falso que, do nosso ponto de vista, estes bens
superem o mal daquele sofrimento — basta pensar que nenhum progenitor que não
seja perverso provocaria aquela doença no seu filho só porque daí resultam
alguns bens.
Esta dificuldade, porém, tem uma resposta óbvia da parte de
Leibniz. Claro que não sabemos em pormenor quais são os bens maiores que fazem
parte dos males que nos parecem gratuitos, diria ele; não o sabemos porque
somos limitados. Porém, dado que se prova facilmente que a divindade teísta é
logicamente incompatível com males gratuitos, levar a sério a existência dessa
divindade obriga a levar a sério a ideia de que não há realmente males
gratuitos. Esta ideia tem de ser levada a sério, por mais que isso nos pareça
estranho e por mais que sejamos incapazes de explicar em pormenor que bens são
esses que são constituídos por males aparentemente gratuitos. Tem de ser levada
a sério porque não há outra maneira de tornar a divindade teísta compatível com
o mal.
A primeira dificuldade recebe uma resposta óbvia, e perfeitamente
razoável, mas acaba por levantar uma dificuldade muitíssimo mais importante e
aparentemente fatal.
Muito humildemente, Leibniz considera que somos demasiado
limitados para saber em pormenor quais são os bens que superam e tornam
necessários os males evidentes. Porém, se somos limitados para saber isso, também
somos limitados para saber se Deus existe ou não. É incoerente, ou pelo menos
arbitrário, aceitar que não há a possibilidade de erro quando consideramos que
sabemos que Deus existe, mas que somos demasiado limitados para saber quais são
os bens que dão sentido aos males e os anulam. Ou somos demasiado limitados nos
dois casos, ou em nenhum, porque é tão difícil saber se Deus existe, como
difícil é saber quais são os bens que superam e anulam os males evidentes, caso
Deus exista.
Em suma, a resposta de Leibniz ao problema do mal parece
epistemicamente incoerente, ou pelo menos arbitrária.
Desidério
Murcho in O estado da Arte
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