O Problema da Causalidade
"Não
temos necessidade de temer que esta filosofia, na medida em que tenta
limitar as nossas pesquisas à vida corrente, destrua os raciocínios de
vida corrente e leve suas dúvidas tão longe a ponto de destruir toda a
acção como toda a especulação. A natureza sempre manterá os seus
direitos e, no fim, prevalecerá sobre os raciocínios abstractos. Mesmo
que concluamos, por exemplo, que em todos os raciocínios tirados da
experiência o espírito dá um passo que não é sustentado por nenhum
progresso do entendimento, não há nenhum perigo que esses raciocínios,
dos quais depende quase todo o conhecimento, sejam afectados por tal
descoberta. Se o espírito não está obrigado a dar esse passo por meio de
um argumento, ele deve ser conduzido por outro princípio igual em peso e
em autoridade; tal princípio conservará a sua influência por tanto
tempo que a natureza humana permanecerá a mesma. A natureza desse
princípio bem merece que nos entreguemos ao esforço de investigar sobre
ela.
Suponha-se que um homem, dotado das mais poderosas
faculdades de razão e de reflexão, seja subitamente transportado por
este mundo; certamente ele observaria de imediato uma contínua sucessão
de objectos, um acontecimento seguir-se a outro; mas seria incapaz de
descobrir outra coisa. De imediato, ele seria incapaz, por meio de algum
raciocínio, de atingir a ideia de causa e efeito, pois os poderes
particulares que concretizam todas as operações naturais nunca se
apresentam aos sentidos; e não é razoável concluir, unicamente porque um
acontecimento precede outro num único caso, que um seja a causa e o
outro o efeito. A sua formação pode ser arbitrária e acidental. Não
existe razão para se inferir a existência de um pela aparição do outro.
Numa palavra, aquele homem, sem mais experiência, nunca faria
conjecturas ou raciocínios sobre qualquer questão de facto; só estaria
certo do que está imediatamente presente na sua memória e nos seus
sentidos.
Suponha-se ainda que este homem tenha adquirido mais
experiência e que tenha vivido por muito tempo no mundo para que tenha
observado a conjugação constante de objectos e de acontecimentos
familiares; que resulta dessa experiência? Ele imediatamente infere a
existência de um dos objectos pela aparição do outro. Todavia, ele não
adquiriu, com toda sua experiência, nenhuma ideia, nenhum conhecimento
do poder oculto pelo qual um dos objectos produz o outro; e não é por
nenhum progresso de raciocínio que ele é obrigado a chegar a esta
conclusão. Mas ele sempre se acha determinado a tirá-la; e, mesmo que o
convencêssemos que o seu entendimento de modo algum participa na
operação, ele continuaria a ter o mesmo pensamento. Existe um outro
princípio que o determina a estabelecer tal conclusão.
Esse princípio é o hábito ou costume.
Pois, todas a vezes que a repetição de uma operação ou de um acto
particular produz uma tendência no sentido de renovar o mesmo acto ou a
mesma operação sem o impulso de qualquer raciocínio ou processo do
entendimento, dizemos sempre que essa tendência é o efeito do costume.
Ao empregar esta palavra não pretendemos ter dado a razão última de tal
tendência. Apenas designamos um princípio de natureza humana,
universalmente reconhecido e bem conhecido pelos seus efeitos."
|Ensaio sobre o entendimento humano, David Hume
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