A inteligência artificial
Mas foi realmente sobre a filosofia que o impacto da IA foi maior: criar uma máquina pensante significa desafiar uma velha tradição que coloca o homem e sua capacidade racional como algo único e original do universo. Mais do que isto, criar uma máquina pensante significa dizer que o pensamento pode ser recriado artificialmente sem que para isto precisemos de algo como uma “alma” ou outra marca divina. Algumas questões que tradicionalmente atormentaram os filósofos ao longo dos séculos passaram a receber um novo enfoque a partir da IA: por exemplo, o problema das relações entre a mente e o corpo, que se arrasta há milénios. Durante muitos anos os filósofos discutiram entre si se os nossos estados mentais (raciocínio, sonhos, imagens mentais etc.) seriam apenas manifestações da nossa atividade cerebral (materialismo) ou se eles não seriam reveladores da existência de algo imaterial como, por exemplo, uma alma imortal (dualismo). A IA oferece uma nova perspetiva para situarmos este problema para além das soluções existentes, que pendem seja para o materialismo seja para o dualismo. A receção dada pelos filósofos ao novo modelo da mente humana proposta pela IA foi, entretanto, muito ambígua. Alguns filósofos viram na IA uma alternativa para a filosofia tradicional, que deixaria de ser apenas um conjunto de discussões académicas às vezes consideradas estéreis e inconclusivas. As propostas filosóficas poderiam agora ser testadas em laboratórios, criando-se modelos computacionais para a nossa maneira de raciocinar, de perceber o mundo e de formar pensamentos e ideias a partir dos objetos que estão à nossa volta. Esta seria a verdadeira filosofia “experimental” que muitos filósofos do passado gostariam de ter visto. Outros filósofos, contudo, reagiram com a mesma indignação que parece ter sido experimentada pelo teólogo medieval em visita ao palácio real. Reduzir o ser humano e o pensamento às atividades de uma máquina seria uma proposta no mínimo ultrajante. Se o pensamento humano pode ou não ser mecanizado, como pretendem os teóricos da IA, é uma questão que ainda permanece em aberto. Tudo dependerá ainda de realizações futuras e de algum tipo de consenso a que os filósofos ainda hesitam em chegar. Para se ter uma noção mais precisa do que a IA propõe como programa de pesquisa, é preciso saber um pouco da sua história, das suas realizações até agora, e saber, em linhas gerais, como funciona um computador, o que para muitos é ainda um mistério. É também a estes temas que dedico os capítulos a seguir.
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Os séculos XVII e XVIII conheceram também pela primeira vez uma preocupação filosófica com algumas implicações teóricas envolvidas na construção dos primeiros autómatos de que se tem notícia. Descartes (1596-1650), filósofo racionalista do século XVII e oficialmente considerado o criador da filosofia moderna, expressou este tipo de preocupação em várias passagens de sua obra, argumentando que os autómatos, por mais bem construídos que fossem, jamais se igualariam aos seres humanos em termos das suas habilidades mentais. Isto porque os autómatos nunca viriam a ter uma alma imortal, igual à nossa, que lhes permitisse agir livremente e encadear sentenças de modo a expressar pensamentos como nós, humanos, o fazemos. Mesmo que se construísse um autómato com cordas vocais e boca semelhantes à de um ser humano, ele jamais seria capaz de falar. No máximo, seria um repetidor de palavras, como um papagaio, mas isso não significa falar: significa apenas pronunciar palavras de uma maneira vazia, pois atrás destas não haveria pensamentos. Esse tipo de argumento formulado por Descartes foi ressuscitado por um filósofo norte-americano contemporâneo, John Searle, na forma de uma forte objeção às pretensões da IA.
João de Teixeira, O que é a inteligência artificial
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