DAVID HUME: unicórnios, eus e homens não casados
Hume começa, tal como Locke, por considerar os
conteúdos da mente, os objetos do entendimento humano ou – nas suas palavras –
as perceções da mente ou materiais do pensamento. Hume divide estes conteúdos
em impressões e ideias. Há uma clara distinção, já notada por Locke, entre
sentir realmente dor, calor, raiva, ver uma paisagem, ouvir uma sirene ou
desejar uma bebida fresca e recordar mais tarde ou imaginar estas experiências.
Hume usa o termo «impressões» para indicar «as nossas perceções mais vívidas,
quando ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos». As ideias têm
menos força, são cópias fracas das impressões, trazidas à mente pela memória ou
pela imaginação.
Qual, para Hume, é a relação entre ideias e impressões? Hume afirma que «todas
as nossas ideias ou perceções mais débeis são cópias das nossas impressões ou
perceções mais “vividas”». Por outras palavras, as ideias derivam apenas da
experiência. É claro que Hume sabe que algumas ideias – por exemplo, a minha
ideia de unicórnio – não correspondem exatamente a uma impressão particular.
Mas as partes que compõem a minha ideia de um unicórnio – ideias de cavalos e
de chifres – são cópias de coisas que já vi no mundo. Limitei-me a combinar
ideias derivadas da experiência de uma maneira nova. A ideia de Hume é que
apesar de a mente parecer porventura quase ilimitada na sua capacidade de
imaginar e pensar abstratamente, a matéria bruta sobre a qual ela opera é
sempre extraída de impressões.
É este o cerne do empirismo, e Hume oferece alguns argumentos em sua defesa.
Sugere que pensemos nas nossas próprias ideias e que tentemos apontar uma que
não dependa de uma impressão original. Ataca também diretamente a ideia
favorita dos racionalistas – a ideia de Deus –, e mostra que podemos adquiri-la
pensando nas qualidades das nossas mentes exagerando depois tanto quanto
quisermos o que há nelas de bom e de sábio. Finalmente, considera os indivíduos
que têm falta de uma aptidão sensorial – os cegos, por exemplo – e nota que
estes não têm nenhuma ideia de cor. A explicação, argumenta, é que as ideias
são cópias das impressões, e que quem nunca teve impressões relevantes não pode
ter as ideias correspondentes.
Há certos factos sobre impressões e ideias que nas mãos de Hume têm
consequências filosóficas de longo alcance. Comparadas com as impressões, as
ideias são naturalmente fracas e obscuras e é fácil cometer dois tipos de erros
quando pensamos sobre elas. Em primeiro lugar, podemos confundir uma ideia com outra,
podemos pensar que se justifica tirar uma certa conclusão acerca de uma ideia
quando o que realmente acontece é que estamos a pensar numa ideia semelhante,
mas diferente. Em segundo lugar, e pior, usamos palavras para representar
ideias, e o nosso discurso pode desenrolar-se alegremente mesmo que as partes
relevantes da nossa linguagem não tenham correspondência com alguma ideia fixa
ou determinada. Numa disputa filosófica, quando não estamos a falar em cavalos
e de chifres, mas em ideias muito complexas e abstratas, é fácil termos uma
conversa em que são usadas as mesmas palavras para mencionar coisas diferentes.
Podemos até discutir sobre nada. A nossa disputa poderá ser sobre ideias
ilusórias, meros fantasmas sem base na experiência – o equivalente filosófico
dos unicórnios.
James Garvey, The Twenty Greatest
Philosophy Books (London, 2006, págs. 66-68). Trad. Maria Miguel Pires
(rev. científica Logosferas).
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