Picasso
— Aí, tens toda a razão. Mas talvez Hume seja justamente um
filósofo que pensa de forma um pouco diferente. Mais do que qualquer outro, ele
tem como ponto de partida o mundo quotidiano. Acho que Hume tinha um sentido
muito apurado para o modo como as crianças — ou seja, os novos cidadãos do
mundo — vivem a realidade.— Eu vou conter-me.— Enquanto empirista, Hume via
como sua tarefa a supressão de todos os conceitos e construções especulativas
pouco claros que os teus homens tinham concebido até então. Nessa altura,
estava em circulação na escrita e em conversas todo o tipo de conceitos da
Idade Média e dos filósofos racionalistas do século XVII. Hume queria regressar
à sensibilidade humana original do mundo. Segundo ele, nenhuma filosofia pode
alguma vez ignorar as experiências quotidianas ou dar-nos regras de
comportamento diferentes daquelas que obtemos por meio da nossa reflexão sobre
a vida quotidiana.— Até agora isso parece aliciante. Podias dar exemplos?— Na
época de Hume, estava muito difundida a ideia de que existem anjos. Por anjo, entendemos
uma figura humana com asas. Alguma vez viste um ser desses, Sofia? — Não.— Mas
já viste uma figura humana?
— Que pergunta tão boba.— E também já viste asas?— Claro,
mas nunca num homem.— Segundo Hume, os “anjos” são uma ideia complexa. Esta ideia
é constituída por duas experiências diferentes que não estão juntas na
realidade, mas foram ligadas na fantasia humana. Por outras palavras, a ideia é
falsa e deve ser rejeitada. Do mesmo modo, temos de fazer uma arrumação em todos
os nossos pensamentos e ideias. Tal como Hume afirmou: “Pegando ao acaso em
qualquer volume acerca de teologia ou filosofia da escola, devemos perguntar:
Contém algum raciocínio abstrato acerca da grandeza ou dos números? Não. Contém
algum raciocínio sobre fatos e sobre a realidade baseado na experiência? Não.
Então, lançai-o à fogueira porque só contém ilusão e aparência.”— Bastante
drástico. — Mas há o mundo, Sofia. Mais fresco e nítido nos seus contornos do
que anteriormente. Hume queria regressar ao modo como uma criança vê o mundo —
antes de ideias e reflexões ocuparem espaço na mente. Não disseste que muitos
filósofos, dos quais ouviste falar, vivem no seu próprio mundo e que o mundo
real te interessa mais?— Sim, mais ou menos isso. — Hume poderia ter dito
exatamente o mesmo. Mas observemos mais exatamente o seu raciocínio.
— Estou a ouvir.— Hume verifica em primeiro lugar que o
homem possui por um lado “impressões”, e por outro “ideias”. Por impressão, ele
entende a sensação imediata da realidade exterior. Por ideia ele entende a
recordação dessa sensação.— Exemplos, por favor.— Se te queimas num fogão
quente, tens uma impressão imediata. Mais tarde, podes recordar que te queimaste.
É a isso que Hume chama ideia. A diferença é que a impressão é mais forte e
viva do que a recordação posterior da impressão. Podes dizer que a impressão
sensível é o original e a ideia ou recordação a cópia pálida. Porque, afinal, a
impressão é a causa direta da ideia que é conservada na mente.
— Até agora estou a acompanhar bem.— Mais adiante, Hume
sublinha que tanto uma impressão como uma ideia podem ser ou “simples ou
complexas”. Ainda te lembras que em Locke falamos de uma maçã. A experiência imediata
de uma maçã é também uma impressão complexa. Assim, a ideia de uma maçã é
também uma ideia complexa.— Desculpa a interrupção, mas isso é muito
importante?
— Se é! Apesar de os filósofos se terem preocupado com uma
série de problemas aparentes, não podes agora desistir quando se trata de
construir um raciocínio. Hume teria certamente dado razão a Descartes quanto à
importância de se construir um raciocínio a partir da base.— Para Hume, a
questão é que, por vezes, podemos juntar coisas sem que exista um objeto
composto correspondente na realidade. Assim, surgem ideias falsas de coisas que
não existem na natureza. Já mencionamos os anjos. E, antes disso, já se tinha
falado de crocofantes. Um outro exemplo é o Pégaso, um cavalo com asas. Em
todos estes exemplos, temos de reconhecer que a nossa mente fez uma construção
no vazio. Retirou as asas de uma impressão e os cavalos de outra. Todos os
elementos foram percebidos uma vez e por isso entraram no palco da mente como
impressões verdadeiras. No fundo, a mente não inventou nada. A mente agarrou na
tesoura e na cola e construiu ideias falsas.— Entendo. E agora também
compreendo que isso pode ser importante.— Ainda bem. Hume quer examinar cada
ideia e descobrir se ela é composta de um modo que não encontramos na
realidade. Ele pergunta: em que impressões tem origem esta ideia? Em primeiro
lugar, ele tem que determinar de que ideias simples é composto um conceito.
Deste modo, obtém um método crítico para analisar as ideias humanas. E é assim
que quer organizar os nossos pensamentos e ideias.— Tens um ou dois exemplos?—
Na época de Hume, muitas pessoas tinham uma ideia clara do paraíso. Talvez
ainda te lembres que Descartes explicara que ideias claras e evidentes em si
podiam ser uma garantia deque existe uma correspondência na realidade.
— Como já disse, não sou esquecida.— É-nos imediatamente
claro que “paraíso” é uma ideia extremamente complexa. Vou referir apenas
alguns elementos: no “paraíso” há um “portão de pérolas”, há “estradas de ouro”
e “exércitos de anjos” — e assim por diante. Mas ainda não examinamos tudo nos
seus elementos particulares. Porque também “portão de pérolas”, “estradas de
ouro” e “exércitos de anjos” são ideias compostas. Só quando verificamos que a
nossa ideia complexa de paraíso é constituída por ideias simples como “pérola”,
“portão”, “estrada”, “ouro”, “figura vestida de branco” e “asa”, é que podemos
perguntar se já tivemos de fato alguma vez “impressões simples ”correspondentes.—
E temos. Mas depois montamos todas as impressões simples numa ilusão.— Sim,
Exato, porque quando sonhamos, usamos, por assim dizer, tesoura e cola. Mas Hume
sublinha que toda a matéria, a partir da qual formamos as nossas ilusões, chega
à nossa mente na forma de impressões simples. Uma pessoa que nunca tenha visto
ouro também não poderá imaginar nenhuma estrada de ouro. — Ele é muito esperto.
E quanto a Descartes e a sua ideia clara de Deus?
Jostein Gaarder, O mundo de Sofia
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