O Círculo Cartesiano
Esta objeção foi formulada pela primeira vez por Antoine
Arnauld (1612–1694), um teólogo e filósofo francês, contemporâneo de Descartes,
nas objeções que escreveu às Meditações sobre a Filosofia Primeira:
Resta-me apenas uma dificuldade, que é a de saber como o
autor se pode defender de cometer um círculo, quando diz que estamos certos de
que as coisas que concebemos claramente e distintamente são verdadeiras apenas
porque Deus é ou existe.
Porque não podemos estar certos de que Deus existe a não ser
porque nós concebemos isso muito claramente e muito distintamente; portanto,
antes de estarmos certos da existência de Deus, devemos estar certos de que as
coisas que concebemos claramente e distintamente são todas verdadeiras.
(Antoine Arnauld, “Quatrièmes objections” in René Descartes, Descartes:
Oeuvres et lettres, Paris: Gallimard, 1992, p. 435
A objeção de Arnauld pode ser expressa em poucas palavras:
Descartes afirma que Deus é a garantia da verdade do que conhecemos com clareza
e distinção, mas ao mesmo tempo usa a clareza e distinção para provar a
existência de Deus (uma vez que as premissas da sua prova da existência de Deus
são por ele consideradas claras e distintas). Descartes, deste modo, raciocina
em círculo e, portanto, comete uma falácia da petição de princípio.
Se esta objeção for correta, como muitos pensam, o seu
efeito para a filosofia de Descartes é devastador. Ao contrário do que afirma,
Descartes não provou a existência de Deus nem a verdade do que percebemos clara
e distintamente e, portanto, não tem nenhum fundamento absolutamente certo para
o conhecimento. O seu projeto cai pela base.
Não temos provas da existência do eu
A crença na existência do cogito ou «eu penso» é fundamental
ao projeto de Descartes. É pela análise do eu, enquanto puro pensamento, que
Descartes prova a existência de Deus e recupera como verdades das quais está
absolutamente certo — e não como meras crenças — tudo o que a dúvida metódica
pôs em questão. Ele pensa ter provado sem margem para dúvidas, como condição de
possibilidade da própria dúvida, que o eu existe. Hume está também aqui em
completo desacordo com Descartes. Hume pensa que não temos, nem podemos ter,
nenhuma ideia de eu. Segundo ele, todas as nossas ideias têm origem em
impressões. Contudo, não temos nenhuma impressão que possa estar no origem da
ideia de eu. Tudo o que encontramos quando olhamos para nós próprios é uma sucessão
de perceções particulares, de calor de frio, de prazer e dor e nunca uma
perceção do eu. Para Hume, portanto, o eu, tal como o entendemos, não existe.
De facto, ele pensa que, de acordo com a experiência, tudo o que podemos dizer
é que a mente, ou eu, é uma espécie de feixe ou coleção de perceções. Se Hume
tiver razão, o cogito é apenas uma ficção e, portanto, não pode ter o papel
absolutamente essencial que Descartes lhe atribui na sua filosofia.
De acordo com Hume, todas as ideias que possuímos tiveram
origem na experiência, mais precisamente em impressões. Ideias como a de dor,
alegria, frio, calor, extraterrestre, anjo, triângulo… resultam da recordação
de certas impressões (sensações externas ou internas experienciadas pelo
sujeito), consideradas isoladamente ou, então, combinadas entre si com a ajuda
da imaginação (por exemplo: a ideia de anjo resulta da junção das impressões de
homem e pássaro).
Tal como o filósofo empirista Locke, Hume defende a origem a
posteriori das ideias. Tudo o que podemos pensar e imaginar, em última
análise, provém do contacto com as coisas do mundo.
E a ideia de Deus? Como se explica a sua formação?
Diz Hume: “ (…) ao analisarmos os nossos pensamentos ou
ideias, por mais compostos e sublimes que sejam, sempre descobrimos que elas se
resolvem em ideias tão simples como se fossem copiadas de uma sensação ou
sentimento precedente. Mesmo as ideias que, à primeira vista, parecem afastadas
desta origem, descobre-se, após um escrutínio mais minucioso, serem delas
derivadas. A ideia de Deus, enquanto significa um Ser infinitamente
inteligente, sábio e bom, promana [procede] da reflexão sobre as operações da
nossa própria mente, e eleva sem limite essas qualidades da bondade e da
sabedoria. Podemos prosseguir esta inquirição até ao ponto que nos agradar,
onde sempre descobriremos que toda a ideia que examinamos é copiada de uma
impressão similar.”
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano,
Edições 70, tradução de Artur Morão, Lisboa, 1985, pág. 25.
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