Texto para resumo Kateryna Sakalo
… a questão principal é, lembremos, a de saber se há um modo de responder
ao cepticismo e de justificar a crença de que há realmente um mundo
físico externo, para além das nossas experiências. Descartes respondeu ao
cepticismo apelando à ideia de Deus, uma ideia que podemos encontrar no
interior da nossa mente, tenha esta última algum contacto com uma realidade
física externa ou não. Descartes adoptou a perspectiva de que a existência de
Deus pode ser provada através dos argumentos teístas tradicionais. Provar que
Deus existe é provar que um ser totalmente bom existe e que esse ser, embora
possa permitir que cometamos erros de quando em vez (para podermos aprender com
eles), não permitiria que vivêssemos em geral enganados, pois isso seria
contrário à sua bondade. Daí se segue que Deus não permitiria que estivéssemos
sempre a sonhar, a ser enganados por um espírito malévolo ou outra coisa do
género. Logo, se os nossos sentidos nos levam a acreditar na realidade de um
mundo externo, num mundo físico, esse mundo terá de existir.
(…) é claro que seria mais satisfatório
filosoficamente se conseguíssemos responder ao cepticismo sem ter de apelar à
existência de Deus, porque isso nos faria evitar pelo menos um assunto que pode
ser tão controverso como o cepticismo e o realismo indirecto. Na perspectiva de
muitos filósofos, podemos fazê-lo argumentando que a crença comum de que há
objectos externos que correspondem às nossas experiências perceptivas é um
género de hipótese quase científica que encerra a melhor explicação
dessas experiências; uma explanação que é constantemente confirmada por
predições com êxito que fazemos nessa base. Como [Michael] Lockwood argumentou,
este tipo de defesa imita exactamente a justificação dos cientistas para
hipóteses acerca de entidades não observáveis como os electrões. Se a nossa
crença na existência dos electrões pode ser racionalmente justificada em
virtude dela ser assumida por uma teoria científica bem confirmada, então
também a nossa crença em objectos físicos externos pode sê-lo, não obstante estes
não serem directamente observáveis.
Um princípio bem conhecido da explicação científica é
a Navalha de Ockham, que defende que as hipóteses mais simples e
económicas são preferíveis às desnecessariamente mais complexas, porque aquelas
levantam menos mistérios subsequentes e, assim, permitem que nos mantenhamos o
mais perto possível da evidência de que dispomos. (…) Uma resposta à sugestão
de Lockwood é que ela viola a Navalha de Ockham, pois um céptico poderia
argumentar que a hipótese do ‘espírito malévolo’ é mais simples e económica do
que a perspectiva comum e que é, por isso, preferível. Na verdade, ao contrário
da visão comum, que assume um enorme número e variedade de objectos físicos
externos governados por leis complicadas, a hipótese do demónio postula a
existência de um único objecto, o próprio demónio, operando de acordo com o
princípio simples de querer enganar.
No entanto, como argumentou o físico David Deutsch, as
hipóteses cépticas, como os cenários do cérebro na cuba e do espírito malévolo,
são na verdade mais complicadas do que a crença comum num mundo físico
externo, pois são parasitas desta. Para formar a hipótese de um espírito
malévolo enganador, temos primeiro de formar a hipótese comum da existência do
mundo de objectos físicos externos governados por leis físicas e depois
imaginar que o demónio nos faz acreditar que esta hipótese é verdadeira. Isso
requer que o demónio seja suficientemente complexo para desempenhar esta tarefa
com êxito, o que significa que é suficientemente complexo para interagir
connosco, imitando exactamente aquilo que seria um mundo realmente composto por
objectos físicos externos. Mas isso significa que o espírito malévolo teria de
ser ele próprio pelo menos tão complexo como um mundo de objectos físicos externos;
com efeito, significa que esse espírito teria de ser mais complexo, pois
teria não apenas de imitar esse género de mundo, como também de se aperceber
conscientemente de que estaria a fazer tudo isto (consciência que um mundo
de objectos físicos externos não teria). Assim, seria uma coisa pensante, o que
levantaria mais questões: acerca dos motivos subjacentes ao que faz, etc.;
questões que a perspectiva comum não levantaria. Portanto, afinal de contas, a
hipótese do espírito malévolo não é realmente tão simples ou económica quanto a
hipótese do senso comum e a Navalha de Ockham deve levar-nos a rejeitar a
primeira em favor da última das hipóteses.
Edward
Feser, Philosophy of mind. A beginner’s guide. (Oxford, 2006). Trad. Carlos Marques.
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