Você começou agora a ler este livro. Ou assim pensa. Mas
está certo que está realmente a ler o livro? Como sabe se não está meramente a
sonhar ou a ter uma alucinação vívida? Como sabe se não está de facto preso
numa realidade virtual extremamente sofisticada de um programa de computador,
como os personagens do filme The Matrix?
Perante isto, talvez esteja já tentado a parar a
leitura, convencido de que estas questões são frívolas, próprias provavelmente
para uma conversa fora de horas, à mistura com umas cervejas, mas não para um
livro de filosofia sério (…). No entanto, não há filósofo mais sério do que
René Descartes (1596-1650) – o próprio pai da filosofia moderna, como é em
geral conhecido – e ele tomou estas questões (excepto, obviamente, a referência
ao Matrix) como sendo de profunda importância, pois elas formam, na sua
perspectiva, o ponto de partida de uma linha de investigação que não apenas
lança os fundamentos do conhecimento científico, mas revela também a verdadeira
natureza da mente humana e a sua relação com o mundo material (…)
Assim, com a sua curiosidade agora aguçada, regressemos à
questão que Descartes pensava ter estas implicações profundas: como sabe se
está realmente a ler este livro?
Sem dúvida que a sua primeira reacção é dizer simplesmente
que é óbvio que está a ler o livro, pois, na verdade, pode vê-lo
nas suas mãos, sentir as suas páginas, cheirar a tinta e ouvir
os seus dedos a deslizar pelo papel. Se para aí estivesse inclinado, poderia
até saborear os químicos presentes no papel e na tinta. Em qualquer
caso, a razão para acreditar que está a ler o livro é que está a ter o tipo de experiências
que esperaria ter ao ler um livro. Os seus sentidos dizem-lhe que está a ler o
livro; portanto, tem de estar a ler o livro.
Há um problema com esta resposta que podemos descortinar se
fizermos uma comparação com o seguinte exemplo. Suponha que Frederico lhe diz
que irá haver uma festa este Sábado em casa da Etelvina e que você sabe que
Frederico costuma mentir, embora seja convincente a mentir. Ocasionalmente ele
diz a verdade, mas mente muitas vezes, mesmo quando se trata de um assunto
trivial. Quer num caso, quer noutro, a sua postura não se altera, parecendo
sempre sincero. Dado que Frederico é a sua única fonte de informação, tem você
fortes razões para acreditar que haverá uma festa este Sábado em casa da
Etelvina? Certamente que não. Não o sabe com certeza, porque a sua única fonte
de informação, a palavra de Frederico - com toda a sua aparência de sinceridade
- seria exactamente a mesma caso haja realmente festa ou não.
Ora, nós estamos, parece, exactamente nesta situação no que
toca aos nossos sentidos. Eles “dizem-nos” coisas a todo o momento e o modo
como nos falam é muito convincente – “ver para crer”, como diz o ditado, pois é
mais difícil duvidar de algo precisamente quando diante dos nossos olhos.
Apesar disso, há casos bem conhecidos em que aquilo que a nossa experiência nos
diz não é de todo real. Você pode ter a experiência de ser perseguido por um
assassino empunhando uma faca, do seu coração a bater com força e de um grito a
vir do fundo da sua garganta. Aterrado, reflecte sobre a possibilidade de se
tratar de um pesadelo , mas sendo tão vívido, não pode ser; e no
instante em que a faca se enfia no seu corpo… você acorda. Pensava que que os
seus sentidos lhe estavam a dizer que a sua vida corria perigo iminente, mas
estava enganado. De facto, não poderia estar mais a salvo, enroscado na sua
cama, a dormir e a sonhar.
Mas se nos sonhos as suas experiências podem enganá-lo sobre
algo tão importante, porque não sobre algo tão trivial como ler um livro? É
claro que você sabe que os sentidos o enganam em questões triviais – nos sonhos
monótonos sem crimes. Portanto, como pode estar seguro de que não está a sonhar
agora mesmo? “Isto é demasiado vívido para ser um sonho!” Porém, como já
deve ter percebido, um sonho pode ser por vezes tão vívido que a pessoa que o
tem pensa que não é um sonho. Talvez este seja um desses sonhos. Além
disso, como sabe que a realidade é mais vívida que um sonho? Com base na
sua memória de sonhos passados? Mas como sabe que não está apenas a sonhar que
está a lembrar esses sonhos passados correctamente? Um problema similar afecta qualquer
apelo para o que os nossos sonhos normalmente são – digamos, a preto e branco.
Como podemos saber se essas memórias são exactas? (Porque não pode ser este o
seu primeiro sonho a cores? Na verdade, há uma primeira vez para tudo.) Também
não ajuda um apelo para evidência sobre a natureza do sonho tirada de manuais
de psicologia – pode ser que você esteja apenas a ter “memórias” oníricas de
que alguma vez tenha lido esses livros. De facto, parece que qualquer evidência
para que apele ou qualquer teste que possa fazer para provar que não está a
sonhar (por exemplo, beliscar-se a si mesmo) podem ser apenas evidência ou
testes com que se esteja a sonhar.
No fim de contas o que temos é isto: não há nada na natureza
das nossas experiências que possa dizer-nos se estamos acordados ou a sonhar –
em cada caso, a experiência por si mesma não pode dizer-nos que o que estamos a
experimentar neste momento (e em qualquer momento que a consultemos) é real.
Não são só os sonhos a única base desta conclusão inquietante. É largamente
sabido que as nossas experiências, em todas as suas variedades – visual,
audível, táctil, gustativa e olfactiva – dependem de processos no interior dos
nossos cérebros. Quando, por exemplo, você vê um limão, isso é o resultado da
luz reflectida do limão que atinge as suas retinas, que depois provocam sinais
que serão enviados através dos nervos ópticos a centros de processamento no
cérebro, cuja actividade neuronal dá lugar, por fim, à sua experiência visual
do limão. Porém, se isto é o modo natural como a experiência do limão é
produzida, é fácil ver como essa experiência podia, em teoria, ser produzida
artificialmente – um neurocirurgião poderia estimular directamente apenas a
parte do seu cérebro que causa essa experiência, saltando os processos ao nível
do nervo óptico, etc. que normalmente despoletariam aí os acontecimentos. Com
efeito, os neurocientistas são capazes já hoje de produzir sensações muito
simples – um lampejo de vermelho no nosso espaço visual ou, digamos, o cheiro
de lilazes – com esse tipo de estimulação.
Foi Descartes que introduziu o “argumento do sonho” na
discussão filosófica moderna e, embora ele não tenha discutido o cenário do
“cérebro na cuba”, apresentou também um outro talvez ainda mais arrepiante.
Pode achar reconfortante pensar que mesmo que estivesse neste momento a sonhar,
ou que fosse um cérebro desligado do corpo conectado a uma máquina de realidade
virtual, isto ocorra no contexto de um ambiente físico que existe
independentemente. Talvez não possa saber o que se passa num dado momento, mas
pelo menos está ali – quer dizer, há pelo menos uma cama onde está agora a
dormir ou um laboratório algures com cientistas loucos que se riem. Mas e se
nem isso era real? E se você não passa de uma pura alma sem corpo ou
mesmo um cérebro e a única outra coisa que existe é um espírito maligno
extremamente poderoso que passa o tempo a pôr na sua mente todas as
experiências e pensamentos que teve? Todos os lugares onde pensa ter estado,
todas as pessoas que pensa ter conhecido, o próprio universo físico – nada disto
é real, apenas uma enorme e contínua alucinação. Como pode provar que não é
isto que lhe está a acontecer? Tal como com o cenário do sonho, parece que não
se pode ter evidência de que assim não é – pois qualquer evidência para a qual
se apele pode ser evidência que o próprio demónio fabricou.
Edward Feser, Philosophy of mind. A beginner’s guide. (Oxford, 2006). Trad. Carlos Marques.
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