Prezado
Senhor:
Desde que pergunta minha opinião acerca da mútua tolerância entre os cristãos, respondo-lhe, com brevidade, que a considero como o sinal principal e distintivo de uma verdadeira igreja. Porquanto, seja o que for que certas pessoas alardeiem da antiguidade de lugares e de nomes, ou do esplendor de seu ritual; outras, da reforma de sua doutrina, e todas da ortodoxia de sua fé (pois toda a gente é ortodoxa para si mesma); tais alegações, e outras semelhantes, revelam mais propriamente a luta de homens para alcançar o poder e o domínio do que sinais da igreja de Cristo. Se um homem possui todas aquelas coisas, mas se lhe faltar caridade, brandura e boa vontade para com todos os homens, mesmo para com os que não forem cristãos, ele não corresponde ao que é um cristão. "Os reis dos gentios exercem domínio sobre eles ", disse nosso Salvador aos seus discípulos, "mas vós assim não sereis "(Lucas, 22, 25). O papel da verdadeira religião consiste em algo completamente diverso. Não se instituiu em vista da pompa exterior, nem a favor do domínio eclesiástico e nem para se exercitar através da força, mas para regular a vida dos homens segundo a virtude e a piedade. Quem quer que se aliste sob a bandeira de Cristo deve, antes de tudo, combater seus próprios vícios, seu próprio orgulho e luxúria; por outro lado, sem santidade da vida, pureza de conduta, benignidade e brandura do espírito, será em vão que almejará a denominação de cristão. "Tu, quando te converteres, revigora teus irmãos"; disse nosso Senhor a Pedro (Lucas, 22, 32).
Quem for descuidado com sua própria salvação dificilmente persuadirá o público de que está extremamente preocupado com a de outrem. Ninguém pode sinceramente lutar com toda a sua força para tornar outras pessoas cristãs, se não tiver realmente abraçado a religião cristã em seu próprio coração. Se se acredita no Evangelho e nos apóstolos, ninguém pode ser cristão sem caridade, e sem a fé que age, não pela força, mas pelo amor. Assim sendo, apelo à consciência dos que perseguem, atormentam, destroem e matam outros homens em nome da religião, se o fazem por amizade e bondade. E, então, certamente, e unicamente então, acreditarei que o fazem, quando vir tais fanáticos castigarem de modo semelhante seus amigos e familiares, que claramente pecaram contra preceitos do Evangelho; quando os vir perseguir a ferro e fogo membros de sua comunidade religiosa, que estão corrompidos pelos vícios e se não se emendarem estão indubitavelmente condenados; e quando os vir manifestar a ânsia e o amor de salvarem suas próprias almas mediante a inflição de todos os tipos de tormentos e crueldades. Visto que é por caridade, como pretendem, e zelo pelas almas humanas, que os despojam de sua propriedade, mutilam seus corpos, os torturam em prisões infectas e afinal até os matam, afim de convertê-los em crentes e obterem sua salvação; por que permitem que a fornicação, a fraude, a malícia e outros vícios, os quais, segundo o Apóstolo (Rom, 1), cheiram obviamente a paganismo, grassem desordenadamente entre sua própria gente? Estas, e artimanhas semelhantes, são mais opostas à glória de Deus, à pureza da Igreja e à salvação das almas, do que qualquer dissidência consciente, por mais errônea que seja, das decisões eclesiásticas, ou do afastamento do culto público, embora acompanhados de uma existência pura. Por que, então, este zelo abrasador por Deus, pela Igreja e pela salvação das almas - realmente abrasador, na fogueira - ignora, sem qualquer castigo ou censura, tais fraquezas e vícios morais, reconhecidos por todos como diametralmente opostos à confissão do cristianismo, e devota-se inteiramente na aplicação de todas as suas energias para introduzir cerimónias, ou para a correção das opiniões, as quais em grande parte dizem respeito a temas sutis que transbordam a compreensão ordinária dos homens?
J. Locke, CARTA ACERCA DA TOLERÂNCIA ,
Nenhum comentário:
Postar um comentário