No Discurso do Método, [Descartes] conta-nos como na sua juventude se sentia perturbado com o espectro da incerteza:
[…]
encontrava-me embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não
ter tido outro proveito, ao tentar instruir-me, senão o de ter
descoberto cada vez mais a minha ignorância. E, no entanto, estive numa
das escolas mais célebres da Europa…
E, enfim, o nosso século parecia-me tão florescente e fértil de bons
espíritos quanto qualquer um dos precedentes. Por isso, tomei a
liberdade de tomar o meu juízo como universal, concluindo que não há
nenhuma doutrina no mundo que fosse como até então me fizeram crer.
A
resposta de Descartes a esta situação foi procurar os fundamentos sobre
os quais a verdade podia ser assegurada. Por isso, nas suas Meditações Sobre Filosofia Primeira,
ele faz uso de um método de dúvida radical, cujo fim é o de estabelecer
pelo menos alguma crença que possa então servir como alicerce para o
conhecimento. A dúvida radical significa apenas isso. Como diz
Descartes, 'A mais pequena dúvida será suficiente para me fazer rejeitar
qualquer das minhas crenças.'
O argumento de Descartes é um dos mais famosos na história da filosofia.
Ele mostra que nos podemos enganar acerca de certos dados dos sentidos;
que é possível colocar toda a nossa experiência dos sentidos sob dúvida
- podemos, por exemplo, estar a sonhar sem o saber; e, de modo mais
radical, que é possível que nada exista para além das nossas
experiências sensíveis - podemos ter sido iludidos por um demónio
maligno.
Contudo, este processo também mostra que há uma crença renitente. Por
mais que apliquemos o método da dúvida, não é possível duvidar de que
existimos. O próprio facto de se duvidar significa que tem de haver um
'Eu' que está a duvidar. É isto o famoso cogito de Descartes:
Mas
persuadi-me de que não havia nada no mundo, nenhum céu, nenhuma terra,
nenhuns espíritos, nenhuns corpos. E não me persuadi também de que eu
próprio não existia? Pelo contrário, se me persuadi de alguma coisa, eu
existia com certeza. […] De maneira que, depois de ter-se pesado e
repesado muito bem tudo isto, deve por último concluir-se que esta
proposição Eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira sempre que proferida por mim ou concebida pelo espírito.
Descartes,
porém, tem agora um problema. Tendo estabelecido a existência de uma
entidade pensante (se realmente foi estabelecida), como recupera o resto
do mundo? A resposta, de modo breve, é que não é capaz de o fazer; pelo
menos, de modo a satisfazer um filósofo dos nossos tempos. A sua
tentativa envolve o emprego de uma versão do argumento ontológico com o
objectivo de provar a existência de Deus, argumentando depois que, como
Deus não é enganador, não somos sistematicamente enganados sobre as
coisas que percebemos claramente. É razoável assim retomar algumas das
nossas crenças acerca do mundo exterior.
Ophelia Benson & Jeremy Stangroom, Why Truth Matters (London, 2006, pps. 26-27). Tradução Carlos Marques.
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