" O ponto de vista dominante da filosofia ocidental nos últimos
trezentos anos tem sido o que derivou do filósofo francês René Descartes, um
dos filósofos mais influentes de todos os tempos. O seu método consiste em
olhar para um problema questionando o modo como um indivíduo adquire
conhecimento. […]
O trabalho mais conhecido de Descartes, o Discurso do Método – o seu título completo é Discurso do Método Para Conduzir Adequadamente a Razão e Procurar a Verdade nas Ciências – está escrito num estilo atraente e claro. Pode parecer que aquilo que ele escreveu é mais simples e mais óbvio do que é na realidade, por isso temos de considerar aquilo que ele escreveu de modo cuidadoso. Eis uma passagem da quarta parte do Discurso do Método, publicado em 1637, na qual ele define de modo muito claro a sua perspectiva acerca da natureza do seu próprio eu (self):
O trabalho mais conhecido de Descartes, o Discurso do Método – o seu título completo é Discurso do Método Para Conduzir Adequadamente a Razão e Procurar a Verdade nas Ciências – está escrito num estilo atraente e claro. Pode parecer que aquilo que ele escreveu é mais simples e mais óbvio do que é na realidade, por isso temos de considerar aquilo que ele escreveu de modo cuidadoso. Eis uma passagem da quarta parte do Discurso do Método, publicado em 1637, na qual ele define de modo muito claro a sua perspectiva acerca da natureza do seu próprio eu (self):
“Então, examinando atentamente aquilo que eu era e vendo que poderia
presumir que não possuía corpo e que não havia mundo nem nenhum local onde eu
estivesse, mas não poderia fingir que eu não existia; e que, pelo contrário,
pelo facto de estar a duvidar da verdade de outras coisas, seguia-se com
bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que se eu tivesse parado
de pensar, embora tudo o que eu sempre pensei ser verdadeiro o fosse, eu não
tinha razão para acreditar que eu existia; eu soube a partir disto que eu era
uma substância cuja essência ou natureza era apenas o pensamento….”
Esta passagem contém praticamente todos os componentes centrais da
filosofia da mente de Descartes.Em primeiro lugar, Descartes é um dualista.
Isto significa acreditar que a mente e o corpo são duas espécies de coisas
bastante distintas, dois tipos do que ele chama “substância”.Em segundo lugar,
aquilo que ele pensa que tu és, o teu eu, é a mente. Dado que tu és uma mente,
e as mentes são totalmente independentes do corpo, tu podes mesmo assim
existir, sem um corpo.Em terceiro lugar, a tua mente e os teus pensamentos são
aquilo que tu conheces melhor. Para Descartes é possível, pelo menos em
princípio, existir uma mente sem um corpo, sendo incapaz, por mais que tente,
de se aperceber de outras coisas, incluindo outras mentes. Descartes sabia,
como é óbvio, que o modo como tomamos conhecimento daquilo que se passa na
mente de outras pessoas é pela observação da fala e das acções de “outros
corpos”. Mas para ele havia duas possibilidades sérias capazes de pôr em causa
a nossa crença na existência de outras mentes. Uma é que os outros corpos podem
ser apenas fingimentos da nossa imaginação. A outra é que, mesmo que os corpos
e as outras coisas materiais existam, as provas que normalmente pensamos que
justificam a nossa crença que os outros corpos são habitados por mentes pode
ter sido produzida por autómatos, por máquinas sem mentes.Em quarto lugar, a
essência da mente é ter pensamentos, e por “pensamentos” Descartes significa algo
de que te apercebes na tua mente quando estás consciente. (A essência de um
tipo de coisa, K, é a propriedade – ou o conjunto de propriedades – cuja posse
é uma condição necessária e suficiente para ser um membro de K. Ou seja, se
algo tem a propriedade essencial E, então pertence a K – portanto E é uma
condição suficiente para pertencer a K; tudo o que não tem E, não pertence a K
– portanto E é necessário para a relação de pertença.) Noutras passagens
Descartes diz que a essência de uma coisa material – a propriedade, por outras
palavras, que toda a coisa material tem que ter – é ocupar espaço. Isto
significa que para Descartes as duas diferenças essenciais entre coisas
materiais e mentes são (1) que as mentes pensam, enquanto a matéria não pensa,
e (2) que as coisas materiais ocupam espaço, enquanto as mentes não. A tese de
Descartes é, assim, que aquilo que distingue a mente do corpo é o facto
negativo que a mente não existe no espaço e o facto positivo que as mentes
pensam. Não é surpreendente que Descartes tenha pensado que a matéria não
pensa. Poucas pessoas supuseram que as mesas ou os átomos têm pensamentos. Mas
porque é que ele pensou que as mentes não existem no espaço? Afinal, podes
pensar que a minha mente está onde está o meu corpo. Mas se eu não tivesse
corpo, tal como Descartes pensava que era possível, ainda assim eu teria uma
mente. Por isso ele não podia dizer que uma mente tem que estar onde o seu
corpo está, simplesmente porque se pode não ter um corpo. Além disso, se eu
tenho um corpo, porque é que eu não deveria dizer que é aí que a minha mente
está? Se eu não tivesse um corpo, essa seria a resposta errada, mas na verdade
eu tenho um corpo.Eu penso que a principal razão para pensar que as mentes não
existem no espaço é o facto de parecer estranho perguntar “Onde é que estão os
teus pensamentos?”. Mesmo que respondesses dizendo “Eles estão na minha
cabeça”, não seria óbvio que isto era literalmente verdadeiro. Porque se eles
estivessem na tua cabeça, poderias saber exactamente em que lugar da cabeça
estariam e a quantidade de volume que ocupariam. Mas não se pode dizer quantos
centímetros de comprimento ou largura ocupa um pensamento, nem se estão
situados a norte ou a sul do córtex cerebral. […]É precisamente este dualismo
que faz surgir um conjunto de dificuldades à posição de Descartes. Isto porque
quem pensa que mente e corpo são totalmente distintos tem que responder a duas
questões principais. A primeira, como é que eventos mentais causam eventos
físicos? Como é que, por exemplo, as nossas intenções, que são mentais, levam à
ação, que envolve movimentos físicos do nosso corpo? Como é que, por exemplo, é
possível que a interação física entre os nossos olhos e a luz leve às
experiências sensoriais da visão, que são mentais? […]A resposta de Descartes a
estas questões parece clara e suficientemente simples. O cérebro humano,
pensava ele, possui um ponto de interação entre a mente e a matéria. De
facto, Descartes sugeriu a glândula pineal, situada no centro da cabeça, como
sendo o canal entre os dois domínios distintos da mente e da matéria. Era esta
a resposta dele para o problema mente-corpo. No entanto esta teoria entra em
conflito com a afirmação de Descartes de que o que distingue o mental do
material é o facto do mental não ser espacial. Pois se acontecimentos mentais
causam acontecimentos cerebrais, então isso não significa que eventos mentais
ocorrem no cérebro? Como é que algo pode causar um acontecimento no cérebro sem
ser um acontecimento (ou algo do mesmo género) no cérebro? Normalmente, quando
um evento – digamos “A” – causa outro evento – digamos “B” – A e B têm de estar
próximos um do outro, ou tem que existir uma sequência de eventos próximos uns
dos outros entre A e B. Uma drama num estúdio de televisão causa uma imagem no meu
televisor a muitos quilómetros de distância. Mas há um campo electromagnético
transporta a imagem do estúdio até mim, um campo que existe entre o meu
televisor e o estúdio. A perspectiva de Descartes terá de ser a de que os meus
pensamentos causam mudanças no meu cérebro e que estas mudanças depois levam à
minha acção. Mas se os pensamentos não existem ou não estão próximos do meu
cérebro, e se não existe uma cadeia de eventos entre os meus pensamentos e o
meu cérebro, então isto é um tipo de causalidade muito invulgar.Descartes quer
dizer que os pensamentos não estão em nenhum lugar. Mas, de acordo com o que
ele defende, pelo menos alguns dos efeitos dos meus pensamentos estão no meu cérebro
e nenhum dos efeitos diretos dos meus pensamentos estão no cérebro de outras
pessoas. Normalmente os meus pensamentos levam às minhas ações e nunca levam
diretamente às ações de outras pessoas. Chegamos, assim, a um problema central
da posição de Descartes, já que é normal pensar que as coisas estão onde os
seus efeitos se originam. (Podemos designar esta ideia como a tese causal da
localização). Deste ponto de vista, os meus pensamentos estão no meu cérebro,
que é a origem do meu comportamento. Mas se os eventos mentais ocorrem no
cérebro, então, dado que o cérebro está no espaço, pelo menos alguns eventos
mentais também existem no espaço. Assim, o modo como Descartes distingue o
mental do físico não funciona. Designemos esta aparente conflito entre o facto
de que a mente e a matéria parecem interagir causalmente e a afirmação de
Descartes que a mente não existe no espaço o problema de Descartes.”
Kwame Anthony Appiah,Thinking it Through: An introduction to contemporary
philosophy, Oxford University Press
1. O que significa o dualismo corpo/mente?
2. Quais as teses principais do texto acerca da Filosofia cartesiana?
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