" — O que é que entendes por “sistema filosófico”?
— Entendo uma filosofia construída desde a base e que procura encontrar uma resposta para todas as questões filosóficas importantes. A Antiguidade teve grandes construtores de sistemas como Platão e Aristóteles. A Idade Média teve S. Tomás de Aquino, que queria fazer uma ponte entre a filosofia de Aristóteles e a teologia cristã. Veio depois o Renascimento — com uma mistura de velhas e novas ideias sobre a natureza e a ciência, Deus e os homens. Só no século XVII a filosofia tentou de novo pôr em sistema as novas ideias. O primeiro a fazer esta tentativa foi Descartes. Ele deu o sinal de partida para aquilo que se tornaria o projeto filosófico mais importante para as gerações seguintes. Antes de mais, preocupava-o o que nós podemos saber, ou seja, a questão da “solidez do nosso conhecimento”. A segunda grande questão que o preocupava era a “relação entre corpo e alma”. Estas duas problemáticas determinariam a discussão filosófica dos cento e cinquenta anos seguintes.
— Então ele estava adiantado em relação à época. — Mas as questões já andavam no ar na época. Na questão de como podemos alcançar saber seguro, alguns exprimiram o seu total “ceticismo” filosófico.
Achavam que os homens tinham de se conformar com o fato de nada saberem. Mas Descartes não se conformou com isso. Se o tivesse feito, não teria sido um verdadeiro filósofo. De novo, podemos fazer um paralelismo com Sócrates, que não se contentou com o ceticismo dos sofistas. Justamente na época de Descartes, a nova ciência da natureza desenvolvera um método que havia de fornecer uma descrição totalmente segura e exata dos processos naturais. Descartes interrogou-se se não havia um método igualmente seguro e Exato para a reflexão filosófica.
— Entendo.
— Mas esse era apenas um dos problemas. A nova física colocara também a questão sobre a natureza da matéria, ou seja, sobre o que determina os processos físicos na natureza. Cada vez mais pessoas defendiam uma compreensão materialista da natureza. Mas quanto mais o mundo físico era concebido de forma mecanicista, mais urgente se tornava a questão da relação entre corpo e alma. Antes do século XVII, a alma fora descrita geralmente como uma espécie de “espírito vital” que percorria todos os seres vivos. (...)
Foi só no século XVII que os filósofos estabeleceram uma separação radical entre alma e corpo, porque todos os objetos físicos — também um corpo animal ou humano — eram explicados como processos mecânicos. Mas a alma humana não podia ser uma parte desta “máquina fisiológica”? O que era então? Tinha que se esclarecer como é que algo “espiritual” podia dar origem a um processo mecânico. — Essa é realmente uma ideia bastante estranha.
— O que queres dizer com isso?
— Eu decido levantar o meu braço — e o braço eleva-se. Ou eu decido correr para o autocarro e imediatamente as minhas pernas começam a mover-se. Por vezes, penso numa coisa triste: as lágrimas vêm-me logo aos olhos. Assim, tem de haver alguma ligação misteriosa entre o corpo e a consciência. — Foi precisamente este problema que levou Descartes a refletir. (...) ele estava convencido de que há uma divisão rígida entre espírito e matéria."
Jostein Gaarder, O mundo de Sofia
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