AS PERPLEXIDADES DOS DIREITOS DO HOMEM
A Declaração dos Direitos do Homem, no fim do século XVIII,
foi um marco decisivo na história. Significava que doravante o Homem, e não o
comando de Deus nem os costumes da história, seria a fonte da Lei. Independente
dos privilégios que a história havia concedido a certas camadas da sociedade ou
a certas nações, a declaração era ao mesmo tempo a mostra de que o homem se
libertava de toda espécie de tutela e o prenuncio de que já havia atingido a
maioridade. Mas havia outra implicação que os autores da Declaração apenas
perceberam pela metade. A Declaração dos Direitos Humanos destinava-se também a
ser uma proteção muito necessária, numa era em que os indivíduos já não estavam
a salvo nos Estados em que haviam nascido, nem — embora cristãos — seguros de
sua igualdade perante Deus.
Em outras palavras, mal o homem havia surgido como ser
completamente emancipado e isolado, que tinha em si mesmo a sua dignidade, sem
referência a alguma ordem superior que o incorporasse, diluía-se como membro do
povo. Desde o início, surgia o paradoxo contido na declaração dos direitos
humanos inalienáveis: ela referia-se a um ser humano "abstrato", que
não existia em parte alguma, pois até mesmo os selvagens viviam dentro de algum
tipo de ordem social. E, se uma comunidade tribal ou outro grupo
"atrasado" não gozava de direitos humanos, é porque obviamente não
havia ainda atingido aquele estágio de civilização, o estágio da soberania
popular e nacional, sendo oprimida por déspotas estrangeiros ou nativos. Toda a
questão dos direitos humanos foi associada à questão da emancipação nacional;
somente a soberania emancipada do povo parecia capaz de assegurá-los — a
soberania do povo a que o indivíduo pertencia. Como a humanidade, desde a
Revolução Francesa, era concebida à margem de uma família de nações, tornou-se
gradualmente evidente que o povo, e não o indivíduo, representava a imagem do homem.
A total implicação da identificação dos direitos do homem com os direitos dos
povos no sistema europeu de Estados-nações só veio à luz quando surgiu de
repente um número inesperado e crescente de pessoas e de povos cujos direitos
elementares eram tão pouco salvaguardados pelo funcionamento dos Estados-nações
em plena Europa como o teriam sido no coração da África. Os Direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como
"inalienáveis" porque se supunha serem independentes de todos os
governos; mas sucedia que, no momento em que seres humanos deixavam de ter um
governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma
instituição disposta a garanti-los. Ou, quando, como no caso das
minorias, uma entidade internacional se investia de autoridade
não-governamental, o seu fracasso evidenciava-se antes mesmo que suas medidas
fossem completamente tomadas; não apenas os governos se opunham mais ou menos
abertamente a essa usurpação de sua soberania, mas as próprias nacionalidades
interessadas deixaram de reconhecer uma garantia não-nacional, desconfiando de
qualquer ato que não apoiasse claramente os seus direitos "nacionais"
(em contraposição aos meros direitos "linguísticos, religiosos e
étnicos"), e preferiam voltar-se para a proteção de sua mãe-pátria
"nacional", como os alemães e húngaros que viviam fora da Alemanha ou
Hungria, ou para alguma espécie de solidariedade internacional, como os judeus.
Os apátridas estavam tão convencidos quanto as minorias de
que a perda de direitos nacionais era idêntica à perda de direitos humanos e
que a primeira levava à segunda. Quanto mais se lhes negava o direito sob
qualquer forma, mais tendiam a buscar a reintegração numa comunidade nacional,
em sua própria comunidade nacional. (…)
O pior é que as sociedades formadas para a proteção dos
Direitos do Homem e as tentativas de se chegar a uma nova definição dos
direitos humanos eram patrocinadas por figuras marginais — por alguns poucos
juristas internacionais sem experiência política, ou por filantropos. Os grupos
que formavam e as declarações que faziam tinham uma estranha semelhança de
linguagem e composição com os das sociedades protetoras dos animais. Nenhum
estadista, nenhuma figura de certa importância podia levá-los a sério; e nenhum
dos partidos liberais ou radicais da Europa achava necessário incorporar aos
seus programas uma nova declaração dos direitos humanos. Nem sequer as próprias
vítimas, nas suas numerosas tentativas de escapar do labirinto de arame farpado
no qual haviam sido atiradas pelos acontecimentos, invocaram — nem antes nem
depois da Segunda Guerra Mundial — esses direitos fundamentais, que tão
evidentemente lhes eram negados. Pelo contrário, as vítimas compartilhavam o
desdém e a indiferença das autoridades constituídas em relação a qualquer
tentativa das sociedades marginais de impor os direitos humanos em qualquer
sentido elementar ou geral. Certamente não era devido à má vontade o fracasso
de todos os responsáveis em atender à calamidade de um grupo cada vez mais
numeroso de pessoas forçadas a viver fora do âmbito de toda lei tangível. Os
Direitos do Homem, solenemente proclamados pelas revoluções francesa e
americana como novo fundamento para as sociedades civilizadas, jamais haviam
constituído questão prática em política. Durante o século XIX esses direitos
haviam sido invocados de modo bastante negligente, para defender certos
indivíduos contra o poder crescente do Estado e para atenuar a insegurança
social causada pela Revolução Industrial.
Hannah Arendt, As origens do totalitarismo
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