A última exposição futurista, S. Petersburgo, 1915
8 TEXTOS SOBRE ESTÉTICA
Estrutura: Biografia dos autores, definição dos conceitos e das teorias, resumo, conclusão e comentário
Entrega através de logosferas@gmail. com até sexta dia 20
TEXTO 1 – DEFINIÇÃO DE ARTE - Para Luisa Gaspar e Beatriz Barros
Arte deriva do latim ars, que equivale ao termo grego
téchné, que significa arte no sentido do "saber fazer". Quando
falamos de arte entendemos uma forma que vale por si mesma e que, resultado de
um esforço para comunicar, permanece para além dos limites temporais do seu
autor.
A Arte é uma função essencial
do homem, indispensável ao indivíduo como às sociedades e que se impôs a eles
como uma necessidade, desde os tempos pré-históricos. A Arte e o homem são
indissociáveis. Não há arte sem homem, mas também não haja homem sem arte.
Através dela, o homem exprime-se mais completamente, compreende-se e realiza-se
melhor. Pela arte, o mundo torna-se mais inteligível, mais familiar. Ela
permite um eterno intercâmbio entre nós e que nos cerca. A Arte tem ainda uma
outra finalidade, a de comunicar aos outros o mundo desconhecido e inexprimível
que se sente, se imagina, se sonha; tentar fazer entrar no mundo visível o
mundo invisível do criador, projetando este na sua obra, os seus próprios
anseios, o seu mundo interior.
Por meio da obra de arte, o
artista representa ou exprime, isto é, tenta romper, num e noutro caso, um
dos limites que a Natureza lhe impõe.
O artista reflete na obra o
seu mundo vivencial e singular. A arte não tem apenas por fim criar beleza
dando ao homem um dos seus prazeres mais elevados, assume também uma força
indispensável ao seu equilíbrio individual.
O artista cria a obra e o
espectador recria-a dentro de um contexto próprio. Através do prazer e do gozo
que desperta no espectador, a obra de arte revive de um modo novo.
Estabelece-se assim uma
troca entre o homem e o mundo através de um terceiro termo - a obra de arte.
René Huyghe, A arte e o Homem, Larousse
TEXTO 2 – ANÁLISE DE UMA OBRA DE ARTE “ O QUADRADO NEGRO DE
MALEVICH Para Melissa Monteiro e Geovana Stefano
“Consideremos um exemplo de formação de linguagem artística
e analisemos como ela se processou. Escolhi Malevich, o suprematismo de
Malevich. Porquê? Por duas razões, primeiro porque a sua obra suprematista sugere
imediatamente uma linguagem, sugere unidades que se combinam e que, combinando-se,
vão formando quadros, por um movimento próprio. Por outro lado, há esta felicidade
para o comentador e para o investigador de existirem muitos escritos de
Malevich já traduzidos do russo, se bem que muitos outros estejam ainda por
traduzir, que são reflexões, entre outras coisas, sobre a sua própria arte,
sobre o suprematismo e sobre como se formou o suprematismo à sua maneira e
segundo a sua pers-petiva.O suprematismo nasceu do Quadrado Negro, como diz Malevich,
cito: «A superfície plana que forma um quadrado foi o cepo de onde saiu o suprematismo,
o novo realismo colorido enquanto criação não-figurativa», escreve em 1919.1Este
primeiro quadro, que se chama Quadrângulo Negro, porque não é exatamente um
quadrado, mas ficou sempre conhecido como Quadrado Negro sobre Fundo Branco, é de
1915.Direi somente duas palavras sobre os antecedentes da carreira de Malevich
antes de surgir o Quadrado Negro. Como muitos pintores dessa época, do
princípio do século XX, ele procurava uma linguagem abstrata, mesmo um Duchamp ,num
certo momento, ele procurava a linguagem abstrata, como Kandinsky, Mondrian,
etc. O que significava para todos eles chegar a uma realização de formas que
nada devessem ao mimetismo das formas naturais, que nada devessem à luz natural
do Sol, por exemplo. E isso era a abstração, a partir da natureza e do
mimetismo. De uma certa maneira, o que Malevich procura é também a arte abstrata,
como o diz explicitamente, mas o que ele encontra vai além da arte abstracta,
como nós vamos ver, «formas» que não são abstracções.
A carreira de Malevich, como muitas outras, passa por uma
série de fases que implicam um afastamento progressivo desse mimetismo da
natureza, por exemplo, o cubismo, o «cézanismo» como lhe chama, o futurismo, o
fauvismo, tudo isso foram maneiras de se afastar da representação mimética. Um fauve pinta uma árvore de encarnado,
existe já aqui uma diferença. Malevich chega a criar uma nova corrente, uma
nova maneira de fazer a que ele chama alogismo, de que dou aqui dois exemplos,
a Vaca e Violino e Um Inglês em Moscovo. O alogismo é a produção, num quadro,
de formas que nada têm que ver umas com as outras. No primeiro há uma
referência ao cubismo, o violino é uma figura recorrente do cubismo. E no
outro, Um Inglês em Moscovo, a colher é uma colher real que está pintada e
colada ao quadro. Implicando toda uma análise tradicional, o quadro é ordenado
segundo oposições, como por exemplo, as duas faces do aviador, do inglês, em Um
Inglês em Moscovo. Queria chamar ainda a atenção para a sobrecarga de figuras e
de formas, quase atafulhadas, que aparecem nesta última fase, antes do
surgimento do Quadrado Negro. Depois de uma espécie de amontoado, condensado
enorme de formas, de repente, aparece o quê? Aparece um simples quadrado negro,
e os primeiros quadros que se seguem ao Quadrado Negro são quadros de uma
enorme simplicidade: dois quadrados, depois três quadrados, etc. Simplifica-se,
quer dizer, começa-se a partir de zero, e é ele próprio que diz que começa a
partir de zero: «Atingi o zero das formas e fui até ao abismo branco»
José Gil, A arte como linguagem
TEXTO 3 – O QUE É O BELO?
Para Miguel Fazenda e Inês Silva (2 textos)
[...] a única coisa que quero sublinhar é que Kant, como
todos os filósofos, em vez de encarar o problema estético a partir das
experiências do artista (do criador), conduziu a sua reflexão sobre a arte e o
belo estritamente a partir do ponto de vista do 'espectador', e que, desse
modo, sem se dar conta, introduziu o próprio 'espectador' dentro do conceito de
'belo'. Se ao menos os filósofos do belo conhecessem bem este 'espectador'...! Ou
seja, se conhecessem nele uma experiência pessoal grande, um facto pessoal
grande, uma enorme quantidade de vivências, de desejos, de surpresas, de
encantamentos singulares e intensos, no plano do belo! Mas temo bem que tenha
acontecido sempre o contrário: e assim, o que têm para nos dar são, desde o
princípio, definições em que a falta de uma experiência pessoal com alguma
subtileza reveste a forma do verme gordo que habita as regiões do erro radical,
como acontece com a famosa definição kantiana do belo. 'Belo', diz Kant, 'é o
que agrada desinteressadamente'. Desinteressadamente! Compare-se com
esta definição uma outra, dada por um verdadeiro 'espectador' e artista,
Stendhal, que a certa altura chama ao belo 'une promesse de bonheur'. Ao
menos aqui recusa-se e elimina-se precisamente a única coisa que Kant
destaca no estado estético: le désintéressement. Quem tem razão, Kant ou
Stendhal? (GM III 6)
Nietzsche, Genealogia
da moral
Belo e feio. – Nada é mais condicionado, digamos mais
limitado, do que o nosso sentimento do belo. Quem o quisesse pensar
desligado do prazer do ser humano no ser humano perderia imediatamente o chão
sob os seus pés. O 'belo em si' é uma mera palavra, nem sequer chega a ser um
conceito. No belo, o ser humano põe-se a si próprio como medida da perfeição;
em casos seletos, adora-se a si próprio. Uma espécie não pode senão
fazer isto: dizer 'sim' apenas a si própria. O seu instinto mais básico,
o instinto de auto-preservação e auto-propagação, ir radia ainda em tais
sublimidades. O ser humano acredita que o mundo é sobreabundante em
beleza, – mas esquece-se de que é ele a causa disso.
Foi apenas ele quem o dotou de beleza, mas, ah!, só de uma beleza humana,
demasiado humana... No fundo, o ser humano vê-se espelhado nas coisas, toma por
belo tudo aquilo que lhe devolve a sua imagem: o juízo 'belo' é a sua vaidade
da espécie...
Nietzsche, Crepúsculo
dos ídolos
TEXTO 4 – A IMPORTÂNCIA DA ARTE
Para Pedro Carvalho e Baltasar Reis
"Se não tivéssemos aprovado as artes, se não tivéssemos
inventado esta espécie de culto do erro, não poderíamos suportar ver o que nos
mostra agora a Ciência: a universalidade do não verdadeiro, da mentira, e que a
loucura e o erro são condições do mundo intelectual e sensível. A lealdade
teria, por consequência, a náusea e o suicídio. Mas à nossa lealdade
opõe-se uma contrapartida que ajuda a evitar semelhantes consequências: a arte,
enquanto encarada como boa vontade da ilusão. Nem sempre proibimos aos
nossos olhos o concluir, o inventar uma finalidade: a partir daí já não é a
imperfeição, essa eterna imperfeição, que levamos pelo rio do devir, é uma deusa
na nossa ideia, e sentimo-nos infantilmente altivos de a levar connosco.
Enquanto fenómeno estético, a existência conserva-se-nos suportável e a arte
dá-nos os olhos, as mãos, sobretudo a boa consciência que é necessária para poder
fazer dela este fenómeno por meio dos nossos naturais recursos. É preciso
de vez em quando descansarmos de nós próprios, olhando-nos de alto com o
longínquo da arte, para rir, ou para chorar sobre nós: é preciso descobrirmos o
herói e também o louco que se dissimulam na nossa paixão de
conhecer; é preciso sermos felizes, de vez em quando, com a nossa loucura, para
podermos continuar felizes com a nossa sageza! E é porque, precisamente, no
fundo somos pessoas pesadas e sérias, e mais pesos do que homens, que nada nos
faz melhor do que o ceptro de guizos: temos necessidade dele perante nós
próprios, precisamos de toda a arte petulante, flutuante, dançante, trocista,
infantil, satisfeita, para não perder essa liberdade que nos coloca acima
das coisas e que o nosso ideal exige de nós. Seria para nós um recuo
- e precisamente em virtude da nossa irritável lealdade - cair inteiramente na
moral, e tornarmo-nos por amor das super severas exigências que nos impomos
neste ponto, monstros e espantalhos de virtude; e não somente com a inquieta
rigidez daquele que receia a todo o instante dar um passo em falso e cair, mas
com o à-vontade de alguém que pode planar e zombar por cima dela! Como
poderíamos, nesse campo, dispensar a arte e o louco?
...E enquanto mantiverdes ainda, seja no que for, vergonha
de vós próprios, não sereis capazes de ser dos nossos."
Friedrich Nietzsche, A
Gaia Ciência
TEXTO 5 - O QUE É A DIMENSÃO ESTÉTICA
Para Raquel Frutuoso e Ian Oliveira
Trata-se, como é óbvio, da afirmação de que o estético é sentimento
e não conhecimento. Tal é dito logo no próprio título do parágrafo: "O
juízo de gosto é estético". Estético, com efeito, significa, de acordo como
respetivo texto, algo de subjetivo; e mesmo de tão subjetivo que nem as
próprias qualidades segundas, com toda a sua tradição sobretudo moderna de
simples produtos do sujeito a partir das qualidades
Só os sentimentos podem ser verdadeiramente, posto que exclusivamente,
subjetivos; só eles são , pela sua própria-natureza, de quem os tem, e não
podem portanto ser algo de objetivo, que aí esteja para as diversas consciências
deles tomarem consciência. Não é aliás outra coisa o que já Descartes dizia nas
Meditações, ao perguntar se, na verdade, "há coisa mais íntima ou mais interior
que a dor" 6. O estético é portanto, para Kant, antes de tudo, o sentimento
de prazer e de dor do sujeito. Como ele próprio
escreve, resumindo tudo: "Estético significa aquilo cujo princípio determinante
não pode ser senão subjetivo. Toda a relação das representações, mesmo a das sensações,
pode ser objetiva (esta relação significa neste caso: o que é real numa representação
empírica);mas não a relação das representações ao sentimento de prazer e de dor,
que não designa nada no objeto e na qual o sujeito sente como é afetado pela
representação". E pois o sentimento que está na base da estética de Kant e
que depois é caracterizado como desinteressado, universal sem conceito, finalidade
sem fim e necessário. E
assim caracterizado, com efeito, porque o estético em Kant é sem dúvida, antes de
tudo, sentimento, prazer, mas não é um sentimento, um prazer qualquer. Também o
"agradável", ao nível dos sentidos, e o "bom", ao nível quer
do "útil" quer do "perfeito", são ocasião de uma satisfação,
de um comprazimento, e nem por isso eles são o estético. (…)
O prazer estético é, assim, desinteressado, isto é, não
sugere a posse do objeto e nem mesmo a sua existência, bastando a sua simples representação.
E, ao contrário, o agradável implica o interesse, porque cria uma tendência, do
mesmo modo que o bom é igualmente interessado, mas no seu caso através do
conceito. Do ponto de vista da quantidade, porsua vez, apresenta-se com pretensões
à universalidade, apesar de não ter conceito e de ser mesmo um sentimento, pelo
que é irredutivelmente subjetivo.”
J.A Encarnação Reis, a Função do estético
TEXTO 6 - Uma teoria para definir a Arte: A teoria histórica de Levinson
Para Soraia Gomes e Carolina
A questão da arte é a questão ‘o que é a
arte?’ Esta questão tem sido importante tanto na estética como na
prática artística do século XX. Em certas ocasiões, parece que os
artistas tiveram de se confrontar com ela para que o seu trabalho fosse
levado a sério pelo mundo da arte. No momento em que escrevo, o artista
belga Francis Alys resolveu enviar um pavão vivo à Bienal de Veneza em
vez de comparecer ele mesmo. A actividade do pavão é apresentada como
uma obra de arte intitulada O Embaixador. Os agentes britânicos do
artista forneceram um comentário esclarecedor sobre o significado desta
obra de arte:
A
ave pavonear-se-á em todas as exposições e festas como se fosse o
artista em pessoa. É anedótico, insinuando a vaidade do mundo da arte no
espírito das velhas fábulas de animais.
Presume-se
que alguém estaria à mão para limpar as obras menores que este
substituto de artista foi espalhando durante a Bienal. Talvez estas
venham a ser exibidas numa futura Bienal.
Alys
não é de modo nenhum o primeiro artista a apresentar um animal vivo
como uma obra de arte. Por exemplo, Uma Obra de Arte Autêntica de Mark
Wallinger (ver p. ) é um cavalo de corrida que já competira. Não se
pretende que o nome seja entendido como metáfora. É literalmente uma
obra de arte. É um autêntico cavalo de corrida, bem como uma autêntica
obra de arte. Pôr um título ao cavalo e publicitar a sua existência
desafia a maioria das perspectivas aceites acerca do que é a arte. E
esse é, num certo sentido, o objectivo – ou, pelo menos, boa parte dele.
Na criação de obras de arte como estas – um género apelidado ‘objectos
ansiosos’ pelo crítico de arte Harold Rosenberg – os artistas
aproximam-se da condição de filósofos. Vêem os seus predecessores como
proponentes de uma teoria da arte que refutam claramente com um
contra-exemplo bem escolhido. Com o tempo, tais contra-exemplos são eles
próprios absorvidos no mainstream, ao perderem a sua capacidade de
chocar. Tornar-se-ão por fim naquilo que uma nova vanguarda porá em
causa. Deste modo evolui a arte em direcções estranhas e imprevisíveis.
O
mais famoso destes gestos disruptivos – central na maioria das
discussões sobre a questão da arte – é a Fonte de Marcel Duchamp.
Trata-se de um urinol de porcelana com o pseudónimo ‘R. Mutt’ nele
pintado grosseiramente, enviado em 1917 à exposição da Sociedade para a
Defesa dos Artistas Independentes em Nova Iorque. A exposição era
supostamente aberta – os participantes tinham de pagar seis dólares,
podendo assim exibir dois trabalhos. Duchamp pagou a inscrição, mas o
seu trabalho foi, não obstante, rejeitado. O presidente da mesa declarou
à imprensa que a Fonte de Duchamp não era ‘segundo nenhuma definição,
uma obra de arte’. A fotografia da Fonte de Alfred Stieglitz apareceu no
segundo número de uma revista, O Cego, juntamente com uma discussão ‘do
caso Richard Mutt’, que incluía a seguinte justificação (em resposta à
acusação de que a obra era ‘uma simples peça de canalização’ e não
arte):
Não
é importante se foi ou não o Sr. Mutt que fez a fonte com as suas
próprias mãos. Ele ESCOLHEU-a. Pegou num objecto vulgar do quotidiano,
colocou-o de modo a que o seu significado utilitário desaparecesse sob o
novo título e ponto de vista - criou um novo pensamento sobre esse
objecto.
Portanto,
tratava-se de uma obra de arte segundo uma certa definição. Com a Fonte
e outros ‘readymades’ (literalmente, ‘prontos a usar’) – um termo
técnico inventado por Duchamp –, Duchamp abalava a confiança sobre o que
a arte podia e devia ser. Quer a Fonte tenha começado por ser uma
brincadeira ou não, aquilo que Duchamp visava com ela veio a tornar-se
um assunto sério com o passar do tempo. A ideia de que todas as obras de
arte têm de ser o produto da mão do artista, de que têm de ser belas
esteticamente ou profundas emocionalmente, é dificilmente sustentável
quando obras como a Fonte são aceites como parte do mainstream, como de
facto veio a acontecer.
Como
sugeri, objectos ansiosos como O Embaixador, Uma Obra de Arte Autêntica e
a Fonte, fornecem uma espécie de filosofia visual que se debruça sobre e
responde à questão da arte. Porém, é um erro pensar que podem
substituir a filosofia adequadamente. A maioria deles são meras
afirmações jocosas. Há coisas que a filosofia pode dizer acerca desta
questão que não podem ser ditas através de uma obra de arte visual. Este
livro, sendo um trabalho de filosofia, não deverá provavelmente acabar
por ser exposto numa galeria de arte. A filosofia é um exercício crítico
com ideias e palavras. Envolve argumentação e contra-argumentação,
exemplo e contra-exemplo. Os filósofos não se limitam a expressar as
suas crenças, justificam-nas com evidência e argumentos. Raciocinam,
definem, clarificam. Acima de tudo, estão interessados na verdade,
tentando incessantemente ir para além das aparências. Tentam expor a sua
posição com clareza e rigor de modo a poderem ser postos em causa e
porventura criticados. A filosofia, portanto, não tem a ver com
manifestos e gestos, mas com convicções apoiadas em argumentação que
leva a certas conclusões. Apesar disso, a filosofia pode ser apaixonada e
vibrante. Não tem de ser um mero dissecar de argumentos..
A
questão da arte parece acomodar-se melhor a uma resposta filosófica do
que artística. Isto não significa, no entanto, que a filosofia possa
fornecer uma resposta simples. Com efeito, um dos resultados de se
estudar filosofia é o de se tomar consciência de que a maioria das
questões aparentemente simples não têm resposta simples. A filosofia
pode fornecer um suporte teórico para as crenças que nos são mais
queridas, mas pode igualmente mostrar-nos quão pouco sabemos. O oráculo
de Delfos considerou Sócrates o mais sábio dos atenienses, apanhando de
surpresa o filósofo, que sentia nada saber ao certo. Mas ao questionar
aqueles que julgavam saber do que falavam, Sócrates acabou por perceber
que o oráculo tinha razão. A sua sabedoria consistia em conhecer os
limites do seu conhecimento, ao passo que os outros sustentavam
dogmaticamente opiniões indefensáveis. Com este livro, o meu principal
objectivo é pôr a nu uma série de posições indefensáveis, evidenciando
os contra-argumentos e contra-exemplos que as debilitam.
Tendo
em conta que é difícil dizer algo de positivo e de verdadeiro acerca da
arte, podemos ter a tentação de pôr completamente de parte a questão da
arte. Para quê darmo-nos sequer ao trabalho de filosofar acerca de
obras de arte? Barnett Newman sugeriu que os artistas precisam tanto de
teoria da arte como as aves de ornitologia. Mas há aqui uma questão
autêntica, uma questão que merece ser investigada, precisamente porque é
tão intrigante. E ela torna-se tanto mais intrigante quanto mais
artistas põem em causa a noção do que é a arte. A questão é posta mais
obviamente pelos objectos ansiosos. Mas uma vez reconhecida a questão,
ela é de igual modo difícil quando se consideram exemplos de arte
mainstream. Vale certamente a pena devotar alguma energia à tentativa de
lhe responder ou pelo menos mostrar por que razão não é possível
dar-lhe uma resposta.
Nigel Warburton, The Art Question (London, 2003). Trad. Carlos Marques.
TEXTO 7 - O que é a Arte?
Para Tomás Pereira e Sara
A literatura da estética
está atafulhada com tentativas desesperadas para responder à questão “O que é a
arte?” Esta questão, é muitas vezes irremediavelmente confundida com a questão “O
que é a boa arte?”, é crucial no caso da arte encontrada - a pedra apanhada na entrada da garagem e
exposta num museu – e agrava-se ainda mais pela promoção das chamadas arte
ambiental e arte conceptual. O pára-lamas amachucado de um carro numa galeria
de arte, é uma obra de arte? E como considerar algo que não é sequer um
objecto, e não está exposto numa galeria de arte nem num museu – por exemplo, o
escavar e encher um buraco no Central Park como prescrito por Oldenburg? Se estas
são obras de arte, então todas as pedras nas entradas das garagens, todos os
objectos e acontecimentos são obras de arte? Se não o são, o que distingue
aquilo que é daquilo que não é uma obra de arte? O facto de um artista lhe
chamar uma obra de arte? O facto de estar exposto num museu ou numa galeria?
Nenhuma destas respostas faz prevalecer qualquer convicção.
Como observei no início,
parte da dificuldade reside em perguntar a questão errada – em não conseguir
reconhecer que uma coisa pode funcionar como obra de arte em certos momentos e
não noutros. Nos casos cruciais, a verdadeira questão não é “Quais os objectos
que são (permanentemente) obras de arte?” mas “ Quando é que um objecto é uma
obra de arte?” – ou mais brevemente como no meu título, “Quando é arte?”
A minha resposta é que
exactamente como um objecto pode ser um símbolo – por exemplo, uma amostra –em certos
momentos e em certas circunstâncias e não noutras, assim um objecto pode ser
uma obra de arte em certos momentos e não noutros. Na realidade, exactamente
por funcionar, e enquanto funcionar, de determinado modo como um símbolo, um
objecto torna-se uma obra de arte.
(…)
Bem longe de especificar
as características particulares que diferenciam a estética de outra simbolização,
a resposta à questão “Quando é Arte?” parece-me assim claramente estar posta
em termos da função simbólica. (…) A pintura de Rembrandt permanece uma obra de
arte, como permanece uma pintura, quando funciona apenas como coberta; a pedra
da entrada da garagem pode não se tornar estritamente arte pelo facto de
funcionar como arte[1].
Similarmente, uma cadeira permanece uma cadeira mesmo que nunca se tenham
sentado nela, e um caixote permanece um caixote mesmo que nunca tenha sido
usado a não ser para servir de assento. Dizer o que a arte faz não é dizer o
que a arte é; mas eu sugiro que o primeiro é assunto de primordial e especial
preocupação. A questão posterior de definir a propriedade estável em termos da
função efémera, “o quê” em termos do “quando” não está confinada às artes mas é
inteiramente geral, e é a mesma para definir cadeiras como para definir
objectos de arte.(…) que o facto de um objecto ser arte – ou uma cadeira –
depende do intento ou de ele, por vezes, habitualmente, sempre ou
exclusivamente funcionar como tal.(…) Uma característica saliente da simbolização,
aleguei enfaticamente, é que ela pode ir e vir. Um objecto pode simbolizar
coisas diferentes em ocasiões diferentes, e nada noutras ocasiões. Um objecto
inerte ou puramente utilitário pode chegar a funcionar como arte, e uma obra de
arte pode chegar a funcionar como um objecto inerte ou puramente utilitário.
Talvez que, em vez de a arte ter uma existência longa e a vida uma existência
curta, ambas sejam transitórias.(…) A maneira como um objecto ou acontecimento
funciona como obra explica como, através de determinados modos de referência,
aquilo que assim funciona pode contribuir para uma visão – e para a feitura –
de um mundo.
TEXTO 8 - A teoria histórica sobre o que é a Arte
Para Rafael Maia
"Como a designação da teoria deixa adivinhar, para Levinson a
essência da arte reside no seu carácter histórico ou retrospetivo. Toda a arte
é o resultado de uma atividade humana que se relaciona com o seu passado
através da intenção de um indivíduo, que pode ou não conhecer essa história.
Todas as obras de arte se referem necessariamente ao seu passado e, como tal, é
legítimo considerar que, mais do que uma sucessão de eventos, existe evolução
na arte. A responsabilidade por essa evolução pode atribuir-se não a uma
instituição, mas às intenções de indivíduos que pretendem que certos objetos
sejam vistos como já o foram obras de arte do passado. Uma das primeiras
versões da definição histórica proposta pela teoria é a seguinte:
«(I) X é uma
obra de arte = df X é um objeto acerca do qual uma pessoa ou pessoas, possuindo
a propriedade apropriada sobre X, têm a intenção não-passageira de que este
seja perspetivado-como-uma-obra-de-arte, i.e., perspetivado de qualquer modo
(ou modos) como foram ou são perspetivadas corretamente (ou padronizadamente)
obras de arte anteriores.» (Levinson, 1979, p. 236)
Como a própria mancha de
texto deixa adivinhar, Levinson pretende formular uma definição explícita
composta por condições necessárias e suficientes. Para compreender se é ou não
uma definição correta é preciso explicitar os termos da definição. A primeira
condição é a do direito de propriedade. Segundo esta, o artista não pode
transformar em arte objectos que não lhe pertençam ou em relação aos quais não
esteja devidamente autorizado a agir pelos seus proprietários. A esta luz fica
vedada ao artista a possibilidade de transformar em arte algo que, não sendo
seu, apenas indica ou nomeia como tal. O exemplo paradigmático de uma tentativa
de o fazer foi protagonizado por Duchamp em 1916, quando indicou como arte o
Edifício Woolworth. Das suas notas figurava uma indicação para procurar uma
inscrição para o Edifício, então o mais alto de Nova Iorque, como readymade. Contrariamente ao que diria
Dickie, que aceitaria que o Edifício Woolworth adquiriria o estatuto de obra da
arte com a apresentação, Levinson afirma que este não pode chegar a ser arte,
porque Duchamp não o possui nem está autorizado pelos seus proprietários a
usá-lo como produto artístico. Pelas mesmas razões, os artistas não poderão
transformar em arte paisagens, pessoas ou acontecimentos sob os quais não
tenham qualquer direito de propriedade. Esta condição afasta a teoria Histórica
tanto da proposta Institucional como de todas as outras que afirmam que tudo
pode ser arte. Propõe também que se abandone uma visão caricatural do artista
em que este surge dotado de um toque de Midas, capaz de transfigurar tudo o
que a sua arbitrariedade artística selecionar como arte.
A segunda condição é a existência de um certo tipo de
intenção que relaciona a arte do presente com a arte do passado. A arte requer
conhecimento que se adquire ao longo do processo de socialização. Mesmo que não
possua quaisquer crenças verdadeiras acerca da história da arte, o artista é
alguém que tem conhecimentos suficientes acerca dos objetos e dos auditórios
para poder formar intenções acerca desses objetos que fazem referência àquilo
que a arte já foi. Mas que relação intencional é essa? E em que sentido é usada
a palavra «intenção»? Em primeiro lugar, note-se que, para Levinson, a
expressão «tem intenção de» é usada em sentido lato, significando esta apenas
«faz, apropria-se ou concebe com o propósito de». Ter uma intenção, neste
caso, é, então, ter um propósito ou uma finalidade em mente, e desenvolver uma
ação para o atingir. Esta pode consistir em fazer, apropriar-se ou conceber
algo. Depois, exige-se que a intenção não seja transitória, mas sim persistente
ou estável. Impede-se assim que a arte seja fruto de caprichos passageiros ou
de ímpetos momentâneos.
Paula Mateus, A teoria histórica de Levinson
Nenhum comentário:
Postar um comentário