O Cogito
Mas há uma crença, uma proposição resistente, da qual ele não pode absolutamente duvidar. Mesmo que ele seja enganado pelos seus sentidos, que esteja perdido num sonho, que a sua origem seja tal que ele seja um pensador imperfeito, até que um demónio vicioso esteja determinado a lançar sobre ele a confusão, permanece acima de qualquer dúvida que ele existe. Como Descartes diz: ‘ Penso, existo, é necessariamente verdadeiro, de cada vez que eu o expresso ou concebo na minha mente.’ Temos não só um dos mais famosos slogans filosóficos jamais escritos, mas também a primeira verdade, o fundamento sobre o qual Descartes reconstrói o seu sistema de conhecimento. A primeira verdade é por vezes designada ‘o Cogito’, abreviatura da expressão latina ‘Cogito, ergo sum’, ‘Penso, logo existo’.
O estatuto do Cogito tem ocupado os filósofos desde então. Numerosas questões se levantam quase instantaneamente. Trata-se da conclusão de um argumento? Não é claro como possa ser isso, visto que Descartes admitiu não ter crenças, quaisquer premissas com que construir um argumento. Além do mais, ele disse também não ter fé na sua capacidade de construir argumentos, não ter confiança na Lógica. Alguns vêem no Cogito não a conclusão de um argumento, mas uma espécie de descoberta epistémica: uma verdade indubitável na qual ele tropeça. Outros preocupam-se em saber se Descartes pode ter direito ao ‘Eu’ presente no Cogito. Não terá ele de direito apenas a qualquer coisa de menos, a dizer somente que o pensamento ocorre e não que quem o pensa é o próprio Descartes?
O círculo cartesiano
No entanto, Descartes tenta ir para a frente, olhando para novas verdades dentro da sua mente. Pensa um pouco acerca da natureza da dúvida e conclui que a dúvida é uma forma de imperfeição, em comparação com o conhecimento. A reflexão sobre a própria ideia de perfeição condu-lo a uma das várias provas da existência de Deus. Dada a natureza das suas várias dúvidas, Descartes sabe que não é um ser perfeito. Não obstante, tem a ideia de perfeição e essa ideia não lhe pode ter vindo de si mesmo ou de qualquer ser imperfeito. Pode apenas vir de um ser perfeito, nomeadamente, de Deus. Esta linha de pensamento conduz a uma versão do argumento ontológico de Anselmo. A ideia que Descartes tem de Deus é a de um ser com todas as perfeições. A existência é uma forma de perfeição; portanto, Deus tem de existir. Pensar em Deus como não existindo é como pensar num triângulo sem três lados. Assim como possuir três lados está no conceito de triangularidade, existência está no conceito de Deus. Se compreendemos bem a ideia de Deus, temos de aceitar que Deus existe.
O engano, nota Descartes, é uma forma de imperfeição e, por isso, conclui que Deus não pode ser enganador. Logo, podemos confiar nas nossas percepções claras e distintas; não somos sistematicamente enganados e a verdade tem de estar ao alcance das nossas capacidades. Reconstruir um sistema de crenças enraízado na percepção clara e distinta é a tarefa [seguinte].
Muitos notaram nesta linha de argumento um círculo demasiado fechado. Chegamos ao conhecimento de que Deus existe e não é enganador apenas porque aceitámos uma série de percepções claras e distintas. Sabemos que as nossas percepções claras e distintas são fiáveis porque Deus existe e não é enganador. Mas não depende a nossa fé nas percepções claras e distintas da prova de que Deus existe e não pressupõe essa prova a veracidade das nossas percepções claras e distintas?
O problema (…) é o de que o conhecimento parece ser uma coisa frágil. Descartes tem certamente sucesso na parte negativa do seu projecto, arrasando os fundamentos do conhecimento com os argumentos cépticos (…). No entanto, o seu esforço para erguer tudo a partir do nada constitui uma espécie de falhanço. Mas o seu objectivo principal, o de mostrar que uma compreensão científica do mundo é possível é algo que nós, modernos, tomamos como adquirido demasiado facilmente.
James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy Books. London & New York: Continuum, 2006.
Mas há uma crença, uma proposição resistente, da qual ele não pode absolutamente duvidar. Mesmo que ele seja enganado pelos seus sentidos, que esteja perdido num sonho, que a sua origem seja tal que ele seja um pensador imperfeito, até que um demónio vicioso esteja determinado a lançar sobre ele a confusão, permanece acima de qualquer dúvida que ele existe. Como Descartes diz: ‘ Penso, existo, é necessariamente verdadeiro, de cada vez que eu o expresso ou concebo na minha mente.’ Temos não só um dos mais famosos slogans filosóficos jamais escritos, mas também a primeira verdade, o fundamento sobre o qual Descartes reconstrói o seu sistema de conhecimento. A primeira verdade é por vezes designada ‘o Cogito’, abreviatura da expressão latina ‘Cogito, ergo sum’, ‘Penso, logo existo’.
O estatuto do Cogito tem ocupado os filósofos desde então. Numerosas questões se levantam quase instantaneamente. Trata-se da conclusão de um argumento? Não é claro como possa ser isso, visto que Descartes admitiu não ter crenças, quaisquer premissas com que construir um argumento. Além do mais, ele disse também não ter fé na sua capacidade de construir argumentos, não ter confiança na Lógica. Alguns vêem no Cogito não a conclusão de um argumento, mas uma espécie de descoberta epistémica: uma verdade indubitável na qual ele tropeça. Outros preocupam-se em saber se Descartes pode ter direito ao ‘Eu’ presente no Cogito. Não terá ele de direito apenas a qualquer coisa de menos, a dizer somente que o pensamento ocorre e não que quem o pensa é o próprio Descartes?
O círculo cartesiano
No entanto, Descartes tenta ir para a frente, olhando para novas verdades dentro da sua mente. Pensa um pouco acerca da natureza da dúvida e conclui que a dúvida é uma forma de imperfeição, em comparação com o conhecimento. A reflexão sobre a própria ideia de perfeição condu-lo a uma das várias provas da existência de Deus. Dada a natureza das suas várias dúvidas, Descartes sabe que não é um ser perfeito. Não obstante, tem a ideia de perfeição e essa ideia não lhe pode ter vindo de si mesmo ou de qualquer ser imperfeito. Pode apenas vir de um ser perfeito, nomeadamente, de Deus. Esta linha de pensamento conduz a uma versão do argumento ontológico de Anselmo. A ideia que Descartes tem de Deus é a de um ser com todas as perfeições. A existência é uma forma de perfeição; portanto, Deus tem de existir. Pensar em Deus como não existindo é como pensar num triângulo sem três lados. Assim como possuir três lados está no conceito de triangularidade, existência está no conceito de Deus. Se compreendemos bem a ideia de Deus, temos de aceitar que Deus existe.
O engano, nota Descartes, é uma forma de imperfeição e, por isso, conclui que Deus não pode ser enganador. Logo, podemos confiar nas nossas percepções claras e distintas; não somos sistematicamente enganados e a verdade tem de estar ao alcance das nossas capacidades. Reconstruir um sistema de crenças enraízado na percepção clara e distinta é a tarefa [seguinte].
Muitos notaram nesta linha de argumento um círculo demasiado fechado. Chegamos ao conhecimento de que Deus existe e não é enganador apenas porque aceitámos uma série de percepções claras e distintas. Sabemos que as nossas percepções claras e distintas são fiáveis porque Deus existe e não é enganador. Mas não depende a nossa fé nas percepções claras e distintas da prova de que Deus existe e não pressupõe essa prova a veracidade das nossas percepções claras e distintas?
O problema (…) é o de que o conhecimento parece ser uma coisa frágil. Descartes tem certamente sucesso na parte negativa do seu projecto, arrasando os fundamentos do conhecimento com os argumentos cépticos (…). No entanto, o seu esforço para erguer tudo a partir do nada constitui uma espécie de falhanço. Mas o seu objectivo principal, o de mostrar que uma compreensão científica do mundo é possível é algo que nós, modernos, tomamos como adquirido demasiado facilmente.
James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy Books. London & New York: Continuum, 2006.
Trad. Carlos Marques.
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