Naquela época, não estava preocupado com as questões
_Quando é verdadeira uma teoria? Ou: Quando é aceitável uma teoria? O Meu
problema era outro. Desejava traçar uma distinção entre a ciência e a
pseudociência, pois sabia muito bem que a ciência frequentemente comete erros,
ao passo que a pseudociência pode encontrar acidentalmente a verdade. Conhecia,
evidentemente, a resposta mais comum dada ao problema: a ciência distingue-se
da pseudociência - ou _metafísica_ - pelo uso do método empírico, essencialmente
indutivo, que decorre da observação ou da experimentação. Mas essa resposta não
me satisfazia. Pelo contrário, formulei muitas vezes o meu problema como a
procura de uma distinção entre o método genuinamente empírico e o não empírico
ou mesmo pseudo-empírico - isto é, o método que, embora se utilize da
observação e da experimentação, não atinge o padrão cientifico. Um exemplo
deste método seria a astrologia, que tem um grande acervo de evidências
empíricas baseadas na observação: horóscopos e biografias. Mas, como não foi o
exemplo citado que me levou ao meu problema, creio que seria oportuno descrever
brevemente o clima em que ele surgiu e os exemplos que o estimularam. Após o
colapso do Império Austríaco, a Áustria havia passado por uma revolução: a
atmosfera estava carregada de slogans e ideias revolucionárias; circulavam
teorias novas e frequentemente extravagantes. Dentre as que me interessavam, a
teoria da relatividade de Einstein era sem dúvida a mais importante; outras
três eram a teoria da história de Marx, a psicanálise de Freud e a _psicologia
individual_ de Alfred Adler. (…) Durante o verão de 1919, comecei a me sentir
cada vez mais insatisfeito com essas três teorias - a teoria marxista da
história, a psicanálise e a psicologia individual; passei a ter dúvidas sobre o
seu estatuto cientifico. O meu problema assumiu, primeiramente, uma forma
simples: _O que estará errado com o marxismo, a psicanálise e a psicologia
individual? Por que serão tão diferentes da teoria de Newton e especialmente da
teoria da relatividade?_ Para tornar claro esse contraste, devo explicar que,
naquela época, poucos afirmariam acreditar na verdade contida na teoria da
gravitação de Einstein. O que me incomodava, portanto, não era o facto de
duvidar da veracidade daquelas três teorias; também não era o facto de que
considerava a física matemática mais exacta do que as teorias de natureza
psicológica ou sociológica. O que me preocupava, portanto, não era, pelo menos
naquele estágio, o problema da veracidade, da exatidão ou da mensurabilidade.
Sentia que as três teorias, embora se apresentassem como ramos da ciência,
tinham de facto mais em comum com os mitos primitivos do que com a própria
ciência, que se aproximavam mais da astrologia do que da astronomia. Percebi que
meus amigos admiradores de Marx, Freud e Adler, impressionavam-se com uma série
de pontos comuns às três teorias, e sobretudo com sua aparente capacidade de
explicação. Essas teorias pareciam poder explicar praticamente tudo nos seus
respetivos campos. O estudo de qualquer uma delas parecia ter o efeito de uma
conversão ou revelação intelectual, abrindo os olhos para uma nova verdade,
escondida dos ainda não iniciados. Uma vez abertos os olhos, podia-se ver
exemplos confirmadores em toda parte: o mundo estava repleto de verificações da
teoria. Qualquer coisa que acontecesse vinha confirmar isso. A verdade contida
nessas teorias, portanto, parecia evidente; os descrentes eram nitidamente
aqueles que não queriam vê-la: recusavam-se a isso para não entrar em conflito
com seus interesses de classe ou por causa de repressões ainda não analisadas,
que precisavam urgentemente de tratamento. o mais característico da situação
parecia ser o fluxo incessante de confirmações, de observações que verificavam
as teorias em questão, ponto que era enfatizado (salientado) constantemente: um
marxista não abria um jornal sem encontrar em cada página evidência a confirmar
sua interpretação da história. Essa evidência era detetada não só nas
noticias, mas também na forma como eram apresentadas pelo jornal - que revelava
seu preconceito de classe - e sobretudo, é claro, naquilo que o jornal não
mencionava. Os analistas freudianos afirmavam que suas teorias eram
constantemente verificadas por observações clínicas. Quanto a Adler, fiquei
muito impressionado por uma experiência pessoal. Certa vez, em 1919, informei-o
de um caso que não me parecia ser particularmente adleriano, mas que ele não
teve qualquer dificuldade em analisar nos termos da sua teoria do sentimento de
inferioridade, embora nem mesmo tivesse visto a criança em questão.
Ligeiramente chocado, perguntei como podia ter tanta certeza. _Porque já tive
mil experiências desse tipo_ - respondeu; ao que não pude deixar de retrucar:
_Com este novo caso, o número passará então a mil e um… O que queria dizer era
que suas observações anteriores podiam não merecer muito mais certeza do que a
última; que cada observação havia sido examinada à luz da experiência anterior,
somando-se ao mesmo tempo às outras como confirmação adicional. Mas, perguntei
a mim mesmo, que é que confirmava cada nova observação? Simplesmente o facto de
que cada caso podia ser examinado à luz da teoria. Reflecti, contudo, que isso
significava muito pouco, pois todo e qualquer caso concebível pode ser
examinado à luz da teoria de Freud e de Adler. Posso ilustrar esse ponto com
dois exemplos muito diferentes de comportamento humano: o do homem que joga uma
criança na água com a intenção de afogá-la e o de quem sacrifica sua vida na
tentativa de salvar a criança. Ambos os casos podem ser explicados com igual
facilidade, tanto em termos freudianos como adlerianos. Segundo Freud, o
primeiro homem sofria de repressão (digamos, algum componente do seu complexo
de Édipo) enquanto o segundo alcançara a sublimação. Segundo Adler, o primeiro
sofria de sentimento de inferioridade (gerando, provavelmente, a necessidade de
provar a si mesmo ser capaz de cometer um crime), e o mesmo havia acontecido
com o segundo (cuja necessidade era provar a si mesmo ser capaz de salvar a
criança). Não conseguia imaginar qualquer tipo de comportamento humano que
ambas as teorias fossem incapazes de explicar. Era precisamente esse facto - elas serviam sempre e eram sempre confirmadas - que constituía o mais forte argumento em seu favor. Comecei a perceber aos poucos que essa força aparente era, na verdade, uma fraqueza. Com a teoria de Einstein, a situação era extraordinariamente diferente. Tomemos um exemplo típico - a predição de Einstein, confirmada havia pouco por Eddington. A teoria gravitacional de Einstein havia levado à conclusão de que a luz devia ser atraída pelos corpos pesados (como o Sol), exatamente como ocorria com os corpos materiais. Calculou-se portanto que a luz proveniente de uma estrela distante, cuja posição aparente estivesse próxima ao Sol, alcançaria a Terra de uma direção tal que a estrela pareceria estar ligeiramente deslocada para longe do Sol. Em outras palavras, as estrelas próximas do Sol pareceriam ter-se afastado um pouco dele e entre si. Isso não pode ser normalmente observado, pois as estrelas tornam-se invisíveis durante o dia, ofuscadas pelo brilho irresistível do Sol; durante um eclipse, porém, é possível fotografá-las. Se a mesma constelação é fotografada durante um eclipse, de dia e à noite, pode-se medir as distâncias em ambas as fotografias e verificar o efeito previsto. o mais impressionante neste caso é o risco envolvido numa predição desse tipo. Se a observação mostrar que o efeito previsto definitivamente não ocorreu, a teoria é simplesmente refutada: ela é incompatível com certos resultados passíveis da observação; de facto, resultados que todos esperariam antes de Einstein. Essa situação é bastante diferente da que descrevi anteriormente, pois tornou-se evidente que as teorias em questão eram compatíveis com o comportamento humano extremamente divergente, de modo que era praticamente impossível descrever um tipo de comportamento que não servisse para verificá-las. Durante o Inverno de 1919-1920, essas considerações levaram-me a conclusões que posso agora reformular da seguinte maneira. (1) É fácil obter confirmações ou verificações para quase toda teoria – desde que as procuremos. (2) As confirmações só devem ser consideradas se resultarem de predições arriscadas; isto é, se, não esclarecidos pela teoria em questão, esperarmos um acontecimento incompatível com a teoria e que a teria refutado. (3) Toda teoria científica boa é uma proibição: ela proíbe certas coisas de acontecer. Quanto mais uma teoria proíbe, melhor ela é. (4) A teoria que não for refutada por qualquer acontecimento concebível não é científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, como frequentemente se pensa, mas um vício. (5) Todo teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade de testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa. Há, porém, diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais testáveis, mais expostas à refutação do que outras; correm, por assim dizer, maiores riscos. (6) A evidência confirmadora não deve ser considerada se não resultar de um teste genuíno da teoria; o teste pode-se apresentar como uma tentativa séria porém malograda de refutar a teoria. (Refiro-me a casos como o da evidência corroborativa). (7) Algumas teorias genuinamente testáveis, quando se revelam falsas, continuam a ser sustentadas por admiradores, que introduzem, por exemplo, alguma suposição auxiliar ad hoc, ou reinterpretam a teoria ad hoc de tal maneira que ela escapa à refutação. Tal procedimento é sempre possível, mas salva a teoria da refutação apenas ao preço de destruir (ou pelo menos aviltar) o seu padrão científico. (Mais tarde passei a descrever essa operação de salvamento como uma distorção convencionalista ou um estratagema convencionalista) Pode-se dizer, resumidamente, que o critério que define o estatuto científico de uma teoria é a sua capacidade de ser refutada ou testada.
Karl R. Popper, Conjecturas e Refutações Brasília: Editora da UnB. 1980.
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