O projeto de Hume
O impacto das ideias de Descartes e daqueles que com ele
fizeram a revolução científica do século XVII — Galileu, Kepler, Boyle, e,
sobretudo, Newton — foi tão profundo, que no começo do século XVIII a visão
escolástica do mundo tinha sido definitivamente abandonada, substituída pelas
novas filosofia e ciência mecanicistas.1 Mas, por muito radical que
o pensamento cartesiano fosse — e era-o de um modo que hoje somos incapazes de
compreender inteiramente —, em alguns aspectos manteve-se semelhante ao
pensamento de inspiração medieval que substituiu. Na realidade, o pensamento de
Descartes pode ser visto como uma tentativa de conciliar a religião e a
metafísica tradicional com a nova ciência. Recordemos que Descartes tornou a
matéria objeto da ciência, no sentido moderno do termo, mas manteve a mente — o
cogito — firmemente no campo da metafísica, que, segundo ele, é também
capaz de produzir conhecimento indubitável de outras verdades fundamentais,
como Deus e o mundo.
Hume tem pouca simpatia por este género de filosofia, que
pretende não haver limites para as capacidades cognitivas da razão quando
corretamente utilizada, e ser possível ter conhecimento mesmo dos assuntos mais
complexos e difíceis. De facto, a filosofia de Descartes é um bom exemplo do
tipo de filosofia a que Hume se opõe vigorosamente.
A metafísica como estudo da natureza humana e como
ciência empírica
Segundo Hume, a metafísica tradicional é completamente especulativa,
não tem por base a experiência e tem por objetivo justificar as superstições
populares. Isto leva-o a combater este género de metafísica e a fazer aquilo a
que chama a verdadeira metafísica. Hume associa a verdadeira metafísica
ao estudo da natureza humana, que tem por objetivo fazer a geografia mental ou
anatomia da mente, isto é, determinar os princípios mais gerais da mente,
compreender como dão origem às nossas crenças e comportamentos, permitindo
assim estabelecer as capacidades e os limites do entendimento humano. Por este
motivo, o estudo da natureza humana constitui, segundo Hume, a ciência
fundamental, uma vez que todas as outras ciências, como são o resultado do
raciocínio humano, de uma forma ou de outra, dependem dela.
Como deve esta nova metafísica ser feita? Os filósofos que
Hume critica, embora pensassem estar a descobrir os princípios fundamentais do
conhecimento e da realidade, caíram no erro de levar os seus raciocínios mais
longe do que a experiência permite e, por isso, a sua metafísica não é uma
ciência. Para que a metafísica seja uma ciência é necessário fundá-la na
observação e na experiência. A verdadeira metafísica não é uma investigação a
priori, como a que Descartes fazia, mas uma ciência empírica. Hume pretende
fazer naquilo a que chama filosofia moral — as atuais ciências humanas, como a
psicologia, a economia, a ciência política, e disciplinas que hoje incluímos na
filosofia, como a epistemologia, a metafísica, a lógica ou a ética — o que
Newton fez com sucesso na filosofia natural — isto é, a física — e, desse modo,
libertar o estudo da natureza humana da especulação e torná-lo uma investigação
empírica, que, a partir da observação e da experiência, chegue a princípios que
permitam explicar o conhecimento e a conduta humanas. Um aspeto importante
deste método, tanto na versão de Newton como na de Hume, é que a busca por
princípios deve terminar quando se atinge os princípios mais gerais que a
experiência permite. Os limites do conhecimento são, assim, os limites da experiência
e hipóteses sobre causas ocultas — que não podem ser observadas — estão
completamente excluídas. Foi, de resto, pensa Hume, o facto de terem deixado de
formular hipóteses sem apoio na experiência, de terem deixado de especular, que
permitiu aos filósofos naturais explicar com tanto sucesso o mundo físico. A
pretensão de Hume é fazer exatamente o mesmo na filosofia moral.2
Em resumo, a verdadeira metafísica de que Hume fala não é
uma investigação a priori sobre os primeiros princípios, mas um estudo
empírico da mente, que usa o método experimental e cujas hipóteses se devem
manter nos limites da experiência. Este estudo irá revelar as capacidades e os
limites da mente e, desse modo, estabelecer com rigor o que é possível
conhecer. Por este motivo, Hume é considerado um dos primeiros defensores do
naturalismo, uma perspetiva polémica aceite por vários filósofos e cientistas
da atualidade, segundo a qual só a ciência — e nalguns casos, só as ciências
naturais — constitui conhecimento.
O projeto de Hume, portanto, consiste, por um lado, na
eliminação da metafísica tradicional e, por outro, na sua substituição pela
ciência do homem. Concomitantemente, a sua filosofia tem uma fase
essencialmente crítica, cujo objetivo é eliminar as teorias erradas da filosofia
tradicional, e uma fase construtiva, constituída pelos princípios e teorias a
que chega por intermédio da sua ciência do homem.
A teoria das ideias
Para Hume, como vimos, o projeto da ciência do homem, ou a
investigação da natureza humana, consiste na análise da mente. Só fazendo essa
análise, pensa ele, é possível saber a que questões é a mente capaz de dar
resposta e quais as que se encontram fora do seu alcance e das suas
capacidades. Recordemos, no entanto, que Hume pensa que este estudo deve
basear-se na experiência e na observação. Ora, aquilo de que a mente tem
experiência — pelo menos, experiência direta e imediata — é dos seus próprios
conteúdos. Por esse motivo, o estudo da natureza humana centra-se nos conteúdos
da mente e não nos objetos que lhe são exteriores.
Os conteúdos da mente: impressões e ideias
A análise da mente revela que os seus conteúdos são de dois
tipos: impressões e ideias, a que Hume chama indistintamente
percepções. As impressões distinguem-se das ideias pelo grau de força e de
vivacidade com que as apreendemos. As impressões são mais fortes e violentas do
que as ideias. Por “impressões”, Hume entende as sensações, as emoções e as
paixões, como quando vemos, ouvimos, desejamos, queremos, amamos, ou odiamos.
As ideias têm menos força e vivacidade que as respetivas impressões. A
diferença entre impressões e ideias é, segundo Hume, óbvia. Para percebermos
porquê basta que comparemos a impressão visual que temos, por exemplo, da nossa
casa com a ideia que formamos dela quando não está presente aos nossos
sentidos. A ideia da nossa casa é mais fraca, menos viva, do que a impressão. E
isto é assim, de um modo geral, com todas as impressões e ideias. Quando
estamos perante duas percepções, basta-nos comparar os respetivos graus de
força e de vivacidade para sabermos qual é a impressão e qual é a ideia. As
percepções mais fortes e mais vivas são impressões; as outras são ideias.
Álvaro Nunes in Crítica na Rede
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