terça-feira, 6 de outubro de 2015

Argumentos e salsichas

A máquina de salsichas da razão

Aquilo que é maravilhoso num argumento sólido é o seu poder de preservar a verdade. Tomemos, por exemplo, o argumento seguinte:


   1. Francisco é um homem.
   2. Todos os homens vivem na terra.
   Conclusão: Francisco vive na terra.

Este argumento forma-se de duas afirmações, ou premissas, e de uma conclusão. Num argumento dedutivo, como este, as premissas implicam supostamente a conclusão. O argumento, se válido, fornece-nos uma garantia lógica: se as premissas são verdadeiras, a conclusão também o é. Neste caso, o argumento é válido. As premissas implicam realmente a conclusão.
É claro que se introduzirmos num argumento dedutivamente válido uma ou mais falsidades, não há qualquer garantia quanto ao que obteremos. A conclusão pode, ainda assim, ser verdadeira. Mas pode ser falsa. (Suponhamos, por exemplo, que a primeira premissa do nosso argumento é falsa: o Francisco não é um homem – é um extra-terrestre que vive no planeta Plutão; então a nossa conclusão é falsa.)
Portanto, um argumento dedutivo válido preserva a verdade. Se introduzirmos premissas verdadeiras, temos a garantia lógica de que sai uma conclusão verdadeira. Se estivermos interessados em ter convicções que sejam realmente verdadeiras, trata-se de um belo resultado.
Para aqueles que gostam de analogias, podemos dizer que as formas válidas de argumentos dedutivos funcionam um pouco como as máquinas de salsichas. A única diferença é que em vez de introduzirmos carne de salsicha e de saírem do outro lado salsichas, é-nos dada a garantia de que se introduzirmos premissas verdadeiras, sairão conclusões verdadeiras.



A máquina de salsichas indutiva

A argumentação dedutiva não é a única forma de argumentação sólida. Há também os raciocínios indutivos. Eis um exemplo de um argumento indutivo:


  1. A maçã um tem sementes.
2.          2. A maçã dois tem sementes.
      3. A maçã três tem sementes.
    [...]
  1000. A maçã mil tem sementes.
  Conclusão: Todas as maçãs têm sementes.

Este argumento tem mil premissas (embora eu não me tenha dado ao trabalho de listar mais do que quatro). Num argumento indutivo, as premissas apoiam supostamente a conclusão. Aqui, a palavra-chave é apoiam. É claro que estes argumentos não são (e não pretendem ser) dedutivamente válidos. As premissas não implicam dedutivamente a conclusão. Não há garantia lógica de que a maçã seguinte não terá sementes, apesar das muitas maçãs que examinámos até agora. Apesar disso, supomos que o facto de todas as maçãs que examinámos até agora terem sementes torna extremamente razoável que concluamos que todas têm. As premissas, supomos, tornam a verdade da conclusão bastante provável. Se isto é correcto, os argumentos indutivos sólidos também têm a qualidade de preservar a verdade à maneira da máquina das salsichas. Introduzam-se premissas verdadeiras num argumento indutivo sólido e sai provavelmente uma conclusão verdadeira do outro lado.
Uma vez mais, se é a verdade que buscamos, trata-se de um belo resultado.

Stephen Law, The War for Children’s Minds (Londres & Nova Iorque, 2006). Trad. Carlos Marques.

1. Qual o problema tratado no texto?
2. Que comparação é feita? 
3. O que se pretende mostrar com essa comparação?

domingo, 4 de outubro de 2015

De que trata a Lógica?


Ao usarmos as palavras lógico e lógica estamos a participar numa tradição de pensamento que se origina na Filosofia grega, quando a palavra logos – significando linguagem-discurso e pensamento-conhecimento – conduziu os filósofos a indagar se o logos obedecia ou não a regras, possuía ou não normas, princípios e critérios para seu uso e funcionamento. A disciplina filosófica que se ocupa com essas questões chama-se lógica.
A lógica é um dos campos da filosofia, e pode ser considerada uma disciplina introdutória para qualquer estudo filosófico. Isso acontece porque a lógica lida com raciocínios e argumentos, e raciocínios e argumentos fazem parte de qualquer reflexão filosófica, seja ela no campo da teoria do conhecimento, da ética, da filosofia política ou da estética.
Hoje em dia temos a lógica tradicional e a lógica matemática ou simbólica. A lógica tradicional é mais simples e mais acessível que a lógica matemática, mas nem por isso tem menos importância. Pelo contrário, a lógica matemática desenvolveu-se graças aos avanços da lógica tradicional. A base da lógica tradicional foi formulada pelo filósofo grego Aristóteles e foi reelaborada durante a Idade Média. Na segunda metade do século XIX a lógica teve um enorme desenvolvimento até chegar a seu estágio actual, a lógica matemática ou simbólica.
Os estudiosos definem a lógica de diversas maneiras:
"O estudo da lógica é o estudo dos métodos e princípios usados para distinguir o raciocínio correto do incorreto." Irving Coppi

"A lógica trata de argumentos e inferências. Um de seus propósitos básicos é apresentar métodos capazes de identificar os argumentos logicamente válidos, distinguindo-os dos que não são logicamente válidos." Wesley Salmon

"A tarefa da lógica sempre foi a de classificar e organizar as inferências válidas, separando-as daquelas que não o são. A importância desta organização não deve ser subestimada, pois usam-se as inferências (de preferência válidas) tanto na vida comum como nas ciências formais, sendo um exemplo a matemática." Jesus Eugênio de Paula Assis

Estas definições têm alguma coisa em comum. Todas elas se referem a inferências válidas, a raciocínios correctos, a leis do pensamento. O homem sempre foi fascinado pelo pensar e pelas regras deste pensar.

Voltemos ao nosso raciocínio inicial:
Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.

 Este raciocínio é correto. Sócrates é mortal! Temos três proposições. As duas primeiras proposições servem de evidência para a última. Vamos dizer isto em outras palavras: Temos duas premissas que servem de evidência para a conclusão.
Estamos a estudar as relações entre as proposições. Estamos a estudar o argumento, examinando se ele é válido ou inválido. Essa é a tarefa da lógica. Não estamos a discutir as ideias de Sócrates e da sua condição de homem.
Tradicionalmente a lógica foi considerada um portal de acesso ao estudo da filosofia e das ciências.Faz sentido. Discutir e argumentar faz parte do debate sobre qualquer questão. No caso das ciências, conhecer um pouco de lógica pode ser muito valioso. As ciências foram construídas usando procedimentos lógicos e o método científico pode ser visto como lógica aplicada. 
Heidi Strecker, filósofa e educadora in O que é a lógica?


A argumentação tem determinadas exigências:

“- Que espécie de gente vive por aqui?
- Naquela direção – disse o Gato, levantando a pata direita – vive um Chapeleiro, e naquela, uma Lebre de Março. Vai visitar o que quiseres, são ambos loucos.
- Mas eu não quero estar ao pé de gente louca – respondeu a Alice.
- Oh, não podes evitá-lo – disse o Gato. – Aqui todos são loucos. Eu sou louco. Tu és louca.
- Como é que sabes que sou louca? Perguntou a Alice.
- Tens de ser, de outro modo não estarias aqui.
Alice não achava que isso provasse coisa nenhuma (…).”

Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas, tradução de Maria Filomena Duarte, Edições D. Quixote, Lisboa, 1988, págs. 66-67.

Será que o Gato está a argumentar bem ?

sábado, 3 de outubro de 2015

Lógica. Argumentos Dedutivos e não-dedutivos.Validade e verdade.

Argumentos dedutivos e argumentos não-dedutivos


Critérios de avaliação
Embora um argumento possa ter diferentes objectivos, o seu propósito fundamental é, habitualmente, demonstrar que uma conclusão é verdadeira ou, ao menos, provavelmente verdadeira. Assim, os argumentos podem ser avaliados e considerados melhores ou piores na medida em que cumprem ou deixam de cumprir este propósito. Examinaremos, de seguida, quatro critérios para fazer essa avaliação:

1) São todas as premissas verdadeiras?
2) É a conclusão ao menos provável, dada a verdade das premissas?
3) São as premissas relevantes para a verdade da conclusão?
4) É a conclusão vulnerável a nova evidência?

Nem todos estes critérios são aplicáveis a todos os argumentos. Se, por exemplo, um argumento pretende apenas mostrar que determinada conclusão se segue de um determinado conjunto de premissas, sejam ou não essas premissas verdadeiras, então o critério 1 é inaplicável; e, conforme o caso, os critérios 3 e 4 podem também ser inaplicáveis. Neste momento, porém, preocupar-nos-emos com o caso mais comum em que é propósito de um argumento estabelecer que a sua conclusão é, de facto, verdadeira ou provavelmente verdadeira.


Verdade das premissasO critério 1 não é, por si só, adequado para a avaliação de argumentos; mas fornece um bom ponto de partida: não importa quão bom um argumento possa ser, não poderá estabelecer a verdade da sua conclusão se alguma das suas premissas for falsa.
Avaliemos o seguinte argumento quanto ao critério 1:

“Dado que hoje em dia todos os americanos são isolacionistas, a história registará que, no início do século XXI, os Estados Unidos falharam como defensores da democracia mundial.”

A premissa ‘Hoje em dia todos os americanos são isolacionistas’ é indubitavelmente falsa; logo, o argumento não estabelece que os Estados Unidos irão falhar como defensores da democracia mundial. Isto não significa, evidentemente, que a conclusão é falsa; significa, sim, que o argumento é inútil quanto a determinar a sua verdade ou falsidade.

Frequentemente, a verdade ou falsidade de uma ou mais premissas é desconhecida; e, assim, o argumento falha em estabelecer a sua conclusão tanto quanto sabemos. Em tais casos, falta-nos informação suficiente para aplicarmos com segurança o critério 1, e poderemos ter necessidade de suspender o juízo até que informação adicional esteja disponível.
Avaliemos o seguinte argumento quanto ao critério 1:

“Há muitas civilizações extraterrestres avançadas na nossa galáxia. Muitas dessas civilizações geram sinais electromagnéticos suficientemente poderosos para serem detectados na Terra. Logo, temos a possibilidade de detectar sinais gerados por civilizações extraterrestres.”

Ainda não sabemos se as premissas deste argumento são ou não verdadeiras. Não podemos, portanto, fazer melhor do que suspender o juízo até que disponhamos de meios para determinar com segurança a verdade ou a falsidade das premissas. este argumento não convenceria fosse quem fosse da verdade da sua conclusão — pelo menos, não neste momento.

O critério 1 apenas requer que as premissas sejam verdadeiras; mas, na prática, um argumento só comunica a verdade da sua conclusão se as pessoas a quem se dirige souberem que as suas premissas são verdadeiras. Se um argumentador sabe que as suas premissas são verdadeiras mas as pessoas a quem se dirige não, então, de modo a provar-lhes que a sua conclusão é verdadeira, o argumentador deve fornecer argumentos adicionais, a fim de estabelecer a verdade das premissas.
Suponhamos que o vidro de uma janela se quebrou. Uma garotinha apresenta o seguinte argumento:

“O Ricardo partiu o vidro. Eu vi-o.”Se formularmos o argumento na representação canónica, teremos:

Eu vi o Ricardo partir o vidro.
Logo, o Ricardo partiu o vidro.
Suponhamos que temos razões para acreditar que a criança não viu tal coisa. Se avaliarmos o argumento segundo o critério 1, veremos que, ainda que a criança esteja a dizer a verdade, o seu argumento falha em estabelecer a sua conclusão para nós, pelo menos enquanto não soubermos que a sua premissa é verdadeira. O melhor que teríamos a fazer, no momento, seria suspender o juízo e procurar nova evidência.

Outra limitação ao critério 1 é que a verdade das premissas — ou o facto de serem conhecidas como verdadeiras — não basta para garantir que a conclusão é verdadeira. A verdade das premissas é uma condição necessária, mas não suficiente, para estabelecer a verdade da conclusão. Num bom argumento, as premissas devem ainda sustentar a conclusão.
Avalie-se o seguinte argumento quanto ao critério 1:

“Todos os assassinos matam. Logo, os soldados que matam, na batalha, são assassinos.”
Dado que a premissa é verdadeira, o argumento satisfaz o critério 1. No entanto, falha em estabelecer a conclusão, porque a premissa deixa em aberto a possibilidade de algumas pessoas que matam não serem assassinas. Talvez seja esse o caso dos soldados, na batalha; a premissa, pelo menos, não fornece qualquer boa razão para se pensar que não é. Assim, a premissa, embora verdadeira, não sustenta adequadamente a conclusão. O argumento nada prova.

Estes exemplos demonstram a necessidade de estabelecer critérios adicionais para a avaliação de argumentos, critérios para avaliar o grau em que um conjunto de premissas fornece evidência a favor de uma conclusão. Há, a este respeito, dois parâmetros principais que se devem ter em conta. Um é probabilístico: a conclusão pode ser mais ou menos provável, dadas as premissas. O outro parâmetro é a relevância das premissas relativamente à conclusão. Estes dois parâmetros são, respectivamente, o objecto dos nossos dois critérios de avaliação seguintes.


Validade e probabilidade indutivaO critério 2 avalia os argumentos relativamente à probabilidade da conclusão, dada a verdade das premissas. A este respeito, os argumentos podem ser classificados em duas categorias: dedutivos e indutivos.
Um argumento dedutivo é uma argumento cuja validade ou invalidade pode ser explicada pela sua forma lógica, exclusivamente. Se for válido, então a sua conclusão segue-se necessariamente das suas premissas básicas. (Salvo especificação em contrário, usaremos o termo ‘dedutivo’ como sinónimo de ‘dedutivamente válido’.) Mais precisamente, um argumento é dedutivo se é impossível ter todas as premissas básicas verdadeiras e conclusão falsa. Um argumento indutivo, por contraste, é um argumento cuja conclusão não se segue necessariamente das suas premissas: há uma certa probabilidade que a conclusão seja verdadeira se as premissas o são, mas há também a probabilidade que seja falsa.
A probabilidade de uma conclusão, dado um conjunto de premissas, é chamada ‘probabilidade indutiva’. A probabilidade indutiva de um argumento dedutivo é máxima; isto é, é igual a 1 (a probabilidade é habitualmente medida numa escala de 0 a 1). A probabilidade indutiva de um argumento indutivo é tipicamente (porventura sempre) menor do que 1.
Eis dois exemplos de argumentos dedutivos:

Nenhum mortal pode deter o passar do tempo. Você é mortal. Logo, você não pode deter o passar do tempo.”

“Alguns porcos têm asas. Tudo o que tem assas canta. Logo, alguns porcos cantam.”

Os dois argumentos a seguir apresentados são indutivos:

“Não há evidência segura de terem existido seres humanos com mais de 3 metros de atura. Logo, nunca houve humanos com mais de 3 metros de altura.”

“Quimicamente, o cloreto de potássio é muito semelhante ao sal de mesa. Logo, o cloreto de potássio sabe como o sal de mesa.”

Estes exemplos ilustram o facto de que a validade dedutiva e a validade indutiva são independentes da verdade efectiva das premissas e da conclusão. Logo, o critério 2 é independente do critério 1 e não é, por si só, adequado para a avaliação de argumentos. Note-se, por exemplo, que os dois argumentos dedutivos apresentados exibem combinações diferentes de verdade e falsidade. As premissas e a conclusão do primeiro são todas verdadeiras, ao passo que todas as afirmações que figuram no segundo são falsas. Qualquer combinação de verdade e falsidade é possível, seja num argumento dedutivo seja num argumento indutivo, excepto que nenhum argumento dedutivo (válido) pode, por definição, ter todas as premissas verdadeiras e conclusão falsa.

Um argumento dedutivo (válido) cujas premissas básicas são todas verdadeiras diz-se ‘sólido’. Um argumento sólido estabelece com certeza que a sua conclusão é verdadeira.
O argumento seguinte é sólido (é dedutivamente válido e as suas premissas são verdadeiras):

Toda a gente tem um e um só pai biológico. Os irmãos verdadeiros têm o mesmo pai biológico. Ninguém é o seu próprio pai biológico. Logo, não há qualquer pessoa cujo pai biológico seja também seu irmão verdadeiro.”
Note-se que quando dizemos que num argumento dedutivo (válido) é impossível todas as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa, o termo ‘impossível’ deve ser entendido num sentido muito forte. Significa não apenas “impossível na pratica” mas “logicamente impossível”; isto é, impossível na sua própria concepção.
A distinção é ilustrada pelo seguinte exemplo:

“A Susana lê o Wall Street Journal. Logo, a Susana tem mais de 3 meses de idade.”

Apesar de ser impossível na prática alguém que não tem mais de 3 meses de idade ler o Wall Street Journal, isso é, ainda assim, coerentemente concebível; a ideia em si mesma não envolve qualquer contradição. É, assim, logicamente possível (embora praticamente impossível) a conclusão ser falsa e a premissa verdadeira. Por outras palavras, a conclusão, ainda que altamente provável, não se segue necessariamente da premissa. Logo, o argumento não é dedutivo (não dedutivamente válido).
Por outro lado, o argumento pode ser transformado num argumento dedutivo mediante a adição de uma premissa:

Todos os leitores do Wall Street Journal têm mais de 3 meses de idade. A Susana lê o Wall Street Journal. Logo, a Susana tem mais de 3 meses de idade.”Deste modo, não é só praticamente impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa: é logicamente impossível. Este novo argumento é, pois, dedutivo.
Nem sempre é óbvio se um argumento determinado é ou não dedutivo

 Trad. e adapt. de Nolt, John, et al., 1988, Schaum’s Outline of Theory and Problems of Logic, New York, McGraw-Hill, 1998.